domingo, 31 de março de 2013

E nada disto importa

O dia da despedida, lembro-me dele como de uma coisa que se tivesse passado durante uma anestesia; o cansaço, o sono, a saudade, a agitação entravam e saíam de mim numa leveza gasosa. Já nem me lembro bem da família que lá estava e não estava. Mas, do barco, procurei-te sem te encontrar: uma tia Luísa minúscula disse-me, por gestos, que te tinhas ido embora, e foi só então que eu tive a certeza de que me ia embora. Fui para o camarote e sentei-me na cama e ouvia os gritos e os choros sem pensar em nada, e não chorei porque um homem não chora. E nada disto importa porque nos temos um ao outro até ao fim do mundo. Ao barco chegavam constantemente telegramas, recebi dois da tua família mas nenhum de ti. Ainda fui várias vezes ao comissariado mas não havia lá mais nada para mim.

António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto. Cartas da guerra.

Ils ne bougent pas

ESTRAGON - Didi.
VLADIMIR - Oui.
ESTRAGON - Je ne peux plus continuer comme ça.
VLADIMIR - On dit ça.
ESTRAGON - Si on se quittait? Ça ira peut-être mieux.
VLADIMIR - On se pendra demain. (Un temps.) A moins que Godot ne vienne.
ESTRAGON - Et s'il vient?
VLADIMIR - Nous serons sauvés.
     Vladimir enlève son chapeau - celui de Lucky - regarde dedans, y passe la main, le secoue, le remet.

ESTRAGON - Alors, on y va?
VLADIMIR - Relève ton pantalon.
ESTRAGON - Comment?
VLADIMIR - Relève ton pantalon.
ESTRAGON - Que j'enlève mon pantalon?
VLADIMIR - RE-lève ton pantalon.
ESTRAGON - C'est vrai.
     Il relève son pantalon. Silence.

VLADIMIR - Alors, on y va?
ESTRAGON - Alons-y.

     Ils ne bougent pas.

(Beckett, En attendant Godot)

Boxing/ Writing





















Henry Miller

terça-feira, 26 de março de 2013

Lhasa de Sela - Meu amor meu amor

Being good at being a man

In order to be "good at being a man" (kal'andras), one must know "how to wield a knife; dance the acrobatic steps of the leader of the line (brostaris); respond in elegant, assonant verse to a singer's mockery; eat meat conspicuously whenever he gets the chance; keep his word but get some profit from it at the same time; and stand up to anyone who dares to insult him."

Michael Herzfeld, The Poetics of Manhood: Contest and Identity in a Cretan Mountain Village, 1985, p. 124, apud Richard P. Martin, The Language of Heroes: Speech and Performance in the Iliad, Cornell University Press, 1989, p. 91. 

terça-feira, 19 de março de 2013

Neve

He passed a park in Yusuf Pasa that was full of dismantled swings and broken slides; next to it was an open lot where a group of teenage boys were playing football. The high lampposts of the coal depot gave them just enough light, and Ka stopped for a while to watch them. As he listened to them shouting and cursing, and watched them skidding in the snow, and gazed at the white sky and the pale yellow glow of the lamplights, the desolation and remoteness of the place hit him with such force he felt god inside him.

Orhan Pamuk, Snow, Maureen Freely (trad.), Faber & Faber, 2005.

sexta-feira, 15 de março de 2013

A vida é um sonho de que jamais conseguimos despertar, uma sucessão de “tempos-seres”, todos igualmente irreais, misteriosamente ligados entre si, não por um “eu” qualquer de que seriam manifestações, mas pela mera recordação de um lugar de origem, de uma ausência que rodeia aquilo a que chamamos vida e que escorre por entre esses momentos como um fio de nada. Na verdade, esta experiência da vida como pura ausência de si mesma e do mundo não é, em Fernando Pessoa, senão o espelho invertido da vertigem ontológica que o jovem autor do Fausto experimentou perante algo de mais original e de mais estranho do que a consciência da nossa ausência de ser, da nossa evanescência. Essa vertigem é-lhe causada pelo facto de existir, ou de forma mais radical, pelo facto em si da existência. O facto de não haver nada, mistério nenhum, por detrás daquilo que já ali está, esteve e estará sempre ali, inspira-lhe não só o espanto fundamental e incomensurável da filosofia, como também um sentimento que a palavra “horror” mal pode exprimir.

Eduardo Lourenço, O Lugar do Anjo, Ensaios Pessoanos. Gradiva, 2004.

sábado, 9 de março de 2013

The Old Men Admiring Themselves In The Water


I heard the old, old men say,
«Everything alters,
And one by one we drop away.»
They had hands like claws, and their knees
Were twisted like the old thorn-trees
By the waters.
I heard the old, old men say,
«All that’s beautiful drifts away
Like the waters.»

W.B. Yeats

Subir

Subir a correr as escadas até ao último andar da biblioteca em ritmo de perseguição (sed ninguém no encalço, bibliotecas sempre me inspiraram movimentos sneaky, uma vontade de murmurar tudo, um tom conspiracional). Só no topo, olhando para as escadas de incêndio visíveis pelas janelas é que percebo que o edifício é circular porque foi planeado como uma torre. Estou aqui há quase um ano e só agora vejo isso. Aquilo que numa biblioteca pode ser um certo ambiente monástico pode também ser entendido como atmosfera prisional (ia escrever "vaga" antes de "atmosfera" mas refriei-me a tempo, não é vaga coisa nenhuma). A definição é útil porque se aplica a outros contextos, a outros ambientes. O acto de subir testa outra coisa, a ideia de que para ler e para escrever não basta resistência (sublinhar resistência) mental é também preciso resistência física (li isto algures esta semana, não sei onde). Com longa resistência se preparou para resistir e talvez que não o cumpra. Talvez que venha a ceder como madeira seca. Ou talvez que o cumpra cinicamente. Com um jeito de pés pisando vidro moído e rosto impassível. Uma imagem sobre resistência. Se bem que aqui o evidente seria mesmo evocar uma educação pela pedra.
Alguns dos livros aqui estão presos em closed stack, mas a pedido podem passear pela cidade, serem-te confiados por um breve período de algumas horas, de dias até, mas a maior parte deles não pode ser levada contigo para casa. Podem ficar por alguns dias na reading room, reservados em teu nome, mas não podem sair. Vêm numa carrinha azul. Há um gabinete à entrada do edifício. Mostras a um dos bibliotecários o teu cartão. Ela procura os livros que pediste na noite anterior ao closed stack. Os teus livros viajam de noite. Encontram-se contigo de manhã. Andas a ler sobre _____. After virtue. Fiction and the Figures of Life. Singing the dead: a model for epic evolution. Guilt by descent: moral inheritance and decision making in Greek Tragedy. Os teus livros viajam de noite. A sua viagem de noite aos poucos é a tua cara nos autocarros em que de noite, sempre de noite, fazes a viagem de volta. Apropriação. Uma coisa que vais escavando em ti. Frase a frase. Esperas que o significado, a soma de todas as leituras, faça um padrão e do padrão surja um sentido. Mas no processo não aprendes. Não há nada em ti que possa já cair na tentação de ser educado. Ou nada que sequer a queira. Esta foi a última coisa que aprendeste. Mas tens saudades desse tempo. Bibes e sangue a correr do nariz no princípio da primavera, cadeiras baixas, pacotes de leite com chocolate e maçãs ao fim da tarde. Esse mundo desapareceu e aquilo que dele querias de volta nunca existiu. Ou existiu apenas na medida em que a tua visão forçou uma mentira fundacional. Mito insignificante da origem. A identidade é outra coisa. É assim com a maior parte das pessoas. Estes livros que estavam presos cumprem um certo percurso na cidade a uma hora clandestina. Dão entrada na biblioteca às onze da manhã para que os possas levantar depois de almoço. Mas às vezes às dez para as dez já aqui estás porque da janela consegues ver chegar a carrinha. Grandes caixas de plástico azul ficam na rua estreita apenas durante alguns momentos. São deixadas sem vigilância. Left unattended. Como bagagens num aeroporto. Caiu sobre elas a neve de Fevereiro, cai sobre elas a abundante chuva de Março. Aqui o tempo é monótono de variadas maneiras. Homens de capuz carregam-nas para dentro. Qualquer coisa de fúnebre nisto. As academias fecharam os livros. Fecharam os livros para (em versão em que se insinue a mais evidente suspeita, troque-se a "para" por "a pretexto de") os guardar. Do not leave your luggage unattended. De todos os livros nas caixas, terás de separar, só poderás amar alguns. Coabitar com alguns. Mas muitos destes são aqueles livros que são já completamente prisioneiros, que nunca foram livres. (De quantas coisas são reféns as coisas que escrevemos?) Não sabemos se é nosso dever tratá-los com pena ou suspeita, ou ambas. Fora desta cidade, na tua cidade, deixaste para trás uma república de livros livres. Livros que tu fizeste. Livros que fizeste com amigos, livros feitos por amigos. Livros feitos por pequenas casas. Livros impressos ilegalmente. Livros sem um código que o teu cartão com código de barras pudesse redimir por umas horas de uma gaiola onde os fechassem. Livros perigosos, completamente livres, completamente livros. Livros para a felicidade clandestina como em Clarice Lispector. Que podem produzir o efeito físico de subir três andares de um golpe. Há aqui alguns livros assim. Mas estão presos. O teu encontro com eles é premeditado. Das 9 às 21.50 durante os dias de semana. Seguem uma regra para serem lidos. Tu mesma os andas a ler de um ponto de vista da convenção. Não, isto não é verdade. Lembras-te do_____ a semana passada? Sim, mas isso foi inesperado. Nenhum outro livro fala dele. Ele estava até meio escondido na estante (não estava nada, estás a exagerar). As torres altas, ocres, mais altas do que a cúpula deste edifício. Os pequenos quintais mal-tratados. O chá com leite às cinco da tarde. O mau hálito do chá com leite às cinco e meia. Padres anglicanos de batina branca e preta, passando na gala do empedrado, enquadrados pelas linhas amarelas das ciclovias. Cheiro de laranja nas mãos (escapuliste-te para comer, trá-las dentro de um saco de plástico na mochila, são inesgotáveis, nunca mais acabam, o saco é sem fundo, o som de laranja em árabe soa ao nome da nacionalidade com que te identificas). 

O tempo do voo das pernas tem uma relação proporcional directa com a escassez crescente de ar nos pulmões: os únicos livros que interessam são esses. 

Isto é óbvio não devia ser preciso dizê-lo e dizê-lo não exime da possibilidade de incorrer em erro, em violência, injustiça cega e colaborante, da hipótese de clandestinidade, a mão que isto escreve ou que com isto se possa identificar. A mesma que na manhã se estende para os livros que vieram do arquivo. Aquela que deixando a torre e que saindo para a noite que cai (Apolo chegou como chega a noite, recordou-me Miguel não sei quando ou talvez Joana e quando o fui reler, eles eram já parte desse verso, reunidos por um pequeno instante, esses amigos chegavam-me como Apolo que chega como chega a noite, todas as noites Apolo sob a forma da noite, eis o quão perigoso isto é) cantarola no escuro, militantemente, quase militarmente, aquela coisa que Caetano canta em espanhol com insinuante sotaque de português do Brasil: "como és mejor el verso aquél que no podemos recordar".

Antes the "The Wire"

The corner.

A descoberta da arte do desenho

Na casa térrea e húmida de Butadès, oleiro
grego, na alcova da filha, Dibutadès, entrou; por
toda a noite ficou o amante.
Ele ia partir, pelo alvor da madrugada para outra
cidade.

A luz de uma candeia
lançava sombras, centelhas
na parede junto ao leito. Enlaçados trocaram juras,
votos, mas não se resignavam um e outro ao rosto da
ausência.

O jovem - Plínio, o Antigo, não refere o seu nome -
em volúpia, ainda por inteiro não ardida,
cingiu-a de novo, e uma vez mais, para a guardar através
do amor que queria em desmesura no
leito da despedida.

Dibutadès perdia-se de dor na imagem do amante, que
já sentia afastar-se na distância, como uma pétala
dobrada, pálida cor a luz da cera desfazia. Nesse instante
de muita tristeza percebeu no chão uma goiva, com a
qual o pai abria sulcos no barro para dar forma às figuras
negras. Pegou nela, e reclinada sobre o ombro
amado
estendeu o braço para a sombra que
o corpo de vertigem e tom de prata magoada fazia. E
lançou-o na parede. Riscou o contorno até se tornar
vívido e real «Porque vais para a cidade,

longe. Fico com o espelho da tua sombra. O meu olhar
tem todas as noites o cofre onde guardo, de ti,
a raiz do teu corpo.»

João Miguel Fernandes JorgeSobre Mármore, Teatro de Vila Real, Outubro de 2010.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Infelicidade

When it was becoming unbearable – once toward evening in November – and I ran along the narrow strip of carpet in my room as on a racetrack, shrank from the sight of the lit-up street, then turning to the interior of the room found a new goal in the depths of the looking glass and screamed aloud, to hear only my own scream which met no answer nor anything that could draw its force away, so that it rose up without check and could not stop even when it ceased being audible, the door in the wall opened toward me, how swiftly, because swiftness was needed and even the cart horses down below on the paving stones were rising in the air like horses driven wild in a battle, their throats bare to the enemy.

Kafka, aqui.

Tacere

Toda a arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa. Há duas formas de dizer - falar e estar calado. As artes que não são literatura são as projecções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama.

Fernando Pessoa apud Rosa Maria Martelo, O Cinema da Poesia, Sistema Solar, Documenta, 2012, p. 29.

quinta-feira, 7 de março de 2013

terça-feira, 5 de março de 2013

Ruckriem, relevos de corpo

O corpo sempre foi eloquente em
relação à paisagem. Cede-lhe
arbitrário movimento por entre árvores
e pedras. Mas
terá a paisagem alguma vez cantado a sua presença,
quando do chão se eleva e se move ou suspende o
passo e permanece em mortal escultura? E

se fundem com as folhas secas, com o húmus da terra
as formas?

O braço alonga-se, o rosto recebe uma gota de
sombra, o torso guarda leve tremura,
uma sensação de vertigem desce dos cimeiros ramos
converte o corpo num êxtase. Os relevos
hão-de apodrecer
sobre as folhas do outono
irrompe a peonia branca, bravia

o corpo na paisagem também vai morrer por esquecimento -
desaparece no horizonte o arco-irís.

*Neue Nationalgalerie

João Miguel Fernandes JorgeSobre Mármore, Teatro de Vila Real, Outubro de 2010.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Panelkapcsolat, Béla Tarr (1982)

Hee hee hee hee

Bald Pat who is bothered mitred the napkins. Pat is a waiter hard of his hearing. Pat is a waiter who waits while you wait. Hee hee hee hee. He waits while you wait. Hee hee. A waiter is he. Hee hee hee hee. He waits while you wait. While you wait if you wait he will wait while you wait. Hee hee hee hee. Hoh. Wait while you wait.
James Joyce, Ulysses

Negative capability

[S]everal things dovetailed in my mind, & at once it struck me, what quality went to form a Man of Achievement especially in Literature & which Shakespeare possessed so enormously — I mean Negative Capability, that is when man is capable of being in uncertainties, Mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact & reason — Coleridge, for instance, would let go by a fine isolated verisimilitude caught from the Penetralium of mystery, from being incapable of remaining content with half knowledge. This pursued through Volumes would perhaps take us no further than this, that with a great poet the sense of Beauty overcomes every other consideration, or rather obliterates all consideration.

John a George & Thomas Keats, 21 de Dezembro de 1817

John Keats, Letters of John Keats to his Family & Friends, London, MacMillan & Co, 1891.