quinta-feira, 27 de setembro de 2012


A primeira tentação que a gente tem é a de dizer: “Ainda bem que não lhe deram o passaporte.” Não. É evidente que não está certo e que o Alexandre tinha todo o direito de ter ido para Paris e de ter ido curtir com a Nora Mitrani, e o poema e a literatura que tivessem paciência… Porque ele escreveria outra coisa. Ou que não escrevesse, a vida é que é a grande obra de arte… E se a história com a Nora Mitrani corresse mal, paciência também… A grande obra de arte é a nossa vida. Não há outra.

Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária. Maria Antónia Oliveira. Dom Quixote, 2005


UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada


Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor


Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver


Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual


Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal


Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser


Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti


Alexandre O'NeillNo Reino da Dinamarca (1958).

But they exist

Did the ancient Greeks believe in their gods as I believe in the existence of the ancient Greeks? I am not sure how people form their religious beliefs. To hold such beliefs but lack a sense of humour can be dangerous. There are those who search for God in creation. Were I religious this would be my position. And there are people who are holy. They are rare. But they exist. 

Christopher Logue, Prince Charming: A Memoir, Faber & Faber, 1999.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Soon this space will be too small



Soon this space will be too small
And I'll go oustide
To the huge hillside
Where the wild winds blow
And the cold stars shine

I'll put my foot
On the living road
And be carried from here
To the heart of the world

I'll be strong as a ship
And wise as a whale
And I'll say the three words
That will save us all
And I'll say the three words
That will save us all

Soon this space will be too small
And I'll laugh so hard
That the walls cave in

The I'll die three times
And be born again
In a little box
With a golden key
And a flying fish
Will set me free

Soon this space will be too small
All my veins and bones
Will be burned to dust
You can throw me into
A black iron pot
And my dust will tell
What my flesh would not

Soon this space will be too small
And I'll go oustide
And I'll go oustide
And I'll go oustide

(Lhasa de Sela)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Colar da Pomba de Damasco (Mahmud Darwish)


alif . ا
em Damasco
_____ as pombas voam
__________ sobre uma cerca de seda
_______________ duas
____________________ a duas

bâ' . ب
em Damasco
_____ vejo toda a minha língua
______escrita num grão de trigo
______com agulha de mulher
______e corrigiu-a a perdiz da Mesopotâmia.

tâ' . ت
em Damasco
_____ estão bordados os nomes dos cavalos dos árabes
_____ desde os Dias da Ignorância1
______até ao Fim dos Tempos
______ou depois
______com fios de ouro

ṯâ' . ث
em Damasco
_____ o céu anda
_____ pelas ruas velhas
_____ descalço, descalço
_____ acaso precisam os poetas
_____ de inspiração
_____ ou de metro
_____ ou de rima?

jîm . ج
em Damasco
_____ dorme o estrangeiro
_____ de pé em cima da sombra
_____ como minarete no leito da eternidade
_____ sem saudade de país nenhum
_____ ou de ninguém

ḥâ' . ح
em Damasco
_____ prosegue o verbo no imperfeito
_____ as suas ocupações omíadas2:
_____ caminhamos para o nosso amanhã confiantes
_____ no Sol do nosso ontem.
_____ nós e a eternidade,
_____ habitantes deste lugar!

ḫâ' . خ
em Damasco
_____ rodam as conversas
_____ entre o violino e o alaúde
_____ à volta das questões das existências
_____ e dos fins:
_____ àquela que matou um amante renegado,
_____ para ela o Limite da Árvore de Lótus3!

dâl . د
_____ em Damasco
_____ Iussuf rasga
_____ com o nei4
_____ as suas costelas
_____ por nada
_____ senão que
_____ não achou com ele o seu coração

ḏâl . ذ
em Damasco
_____ voltam as palavras à sua origem,
_____ a água:
_____ não é poesia a poesia
_____ e não é prosa a prosa
_____ e tu dizes: não te deixarei
_____ mas toma-me para ti
_____ e toma-me contigo!

râ' . ر
em Damasco
_____ dorme uma gazela
_____ ao lado de uma mulher
_____ em cama de orvalho
_____ e então tira-lhe a roupa
_____ e cobre-se com o Barrada5!

zay . ز
em Damasco
_____ um pardal pica
_____ o trigo que deixei
_____ sobre a minha mão
_____ e deixa-me um grão
_____ para me mostrar amanhã
_____ a minha manhã!

sîn . س
_____ em Damasco
_____ um jasmim namorisca comigo.
_____ não me deixes
_____ e anda nas minhas pegadas
_____ e então o jardim tem cíumes de mim.
_____ não te aproximes
_____ do sangue da noite na minha Lua.

šîn . ش
em Damasco
_____ passo a noite com o meu sonho leve
_____ sobre uma flor de amendoeira que graceja:
_____ sê realista
_____ para que eu floresça segunda vez
_____ à roda da água do nome dela
_____ e sê realista
_____ para que eu atravesse o sonho dela!

ṣâd . ص
em Damasco
_____ apresento a minha alma
_____ a si mesma:
_____ aqui mesmo, sob dois olhos amendoados
_____ voamos juntos gémeos
_____ e adiamos o nosso passado comum

ḍâd . ض
em Damasco
_____ suavizam-se as palavras
_____ e então ouço a voz do sangue
_____ em veias de mármore:
_____ arranca-me ao meu filho,
_____ diz-me a cativa,
_____ ou tornar-te-ás comigo em pedra!


ṭâʾ . ط
em Damasco
_____ conto as minhas costelas
_____ e faço voltar o meu coração ao seu trote
_____ talvez a que me fez entrar
_____ na sua sombra
_____ me tenha matado
_____ e não me dei conta

ẓāʾ . ظ
em Damasco
_____ a estrangeira devolve a sua liteira
_____ à caravana:
_____ não regressarei à minha tenda
_____ não pendurarei a minha guitarra
_____ depois desta tarde
_____ na figueira da família

ʿayn . ع
em Damasco
_____ os poemas são translúcidos
_____ não são palpáveis
_____ e não são mentais
_____ mas o que diz o eco
_____ ao eco

ġayn . غ
em Damasco
_____ a nuvem seca em uma época
_____ e cava um poço
_____ para o Verão dos amantes na várzea do Qâsyûn6
_____ e o nei cumpre os seus usos
_____ na saudade que nele há
_____ e chora em vão

fâ' . ف
em Damasco
_____ registo no caderno de uma mulher:
_____ todos os
_____ narcisos que há em ti
_____ te desejam
_____ e não há muro à tua volta que te proteja
_____ da noite do teu encanto excessivo

qâf . ق
em Damasco
_____ vejo como se encolha a noite de Damasco
_____ devagarinho devagarinho
_____ e como com as nossas uma deusa se torna
_____ una!

kâf . ك
em Damasco
_____ canta o viajante em segredo:
_____ não voltarei de Damasco
_____ vivo
_____ nem morto
_____ mas nuvem
_____ que alivia o peso de borboleta
_____ da minha alma fugitiva.

Mahmûd Darwish
Tradução: André Simões

NOTAS
Cada estrofe tem por título as letras do alfabeto árabe, até ao kaf.

1A jahiliyya, o período pré-islâmico.
2Alusão ao Califado Omíada de Damasco (661-750).
3Trata-se da Árvore de Lótus que marca o fim do Sétimo Céu, ou seja: a última fronteira, aquela que ninguém pode passar (Alcorão 53:14).
4O nay é um género de flauta oriental.
5Trata-se de um rio que atravessa Damasco.
6Trata-se de um rio que atravessa Damasco.


Make noise

The play's centerpiece is a deception scene in which two men manipulate Elektra with lies to a point of near hysteria. She is an adult but unmarried female in the house of a mother who hates her and she has neither social function nor emotional context. She seems to squat on the doorstep of the house rather than live inside. Her sister calls her a maniac and waves her ideas away. Her brother treats her as superflous to his plans - he finds her wild, emotional, depressing. She is a woman stranded at doorways and passivity is killing her. 
There is only one thing she can do.
Make noise.

Anne Carson sobre Electra in Sophokles, "Elektra", An Oresteia, Faber & Faber, 2009.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A sudden Unspeakable Sweat Floweth Down my Skin

He gazes, perhaps he blames

Sweat. It's just sweat. But I do like to look at them.
Youth is a dream where I go every night
and wake with just this little jumping bunch of arteries in my hand
Hard, darling, to be sent behind their borders.
Carrying a stone in each eye.

Anne Carson, Plainwater: Essays and Poetry, Vintage Books, 1995

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

The Lass of Aughrim

  The air of the room chilled his shoulders. He stretched himself cautiously along under the sheets and lay down beside his wife. One by one they were all becoming shades. Better pass boldly into that other world, in the full glory of some passion, than fade and wither dismally with age. He thought of how she who lay beside him had locked in her heart for so many years that image of her lover’s eyes when he had told her that he did not wish to live. 
 Generous tears filled Gabriel’s eyes. He had never felt like that himself towards any woman, but he knew that such a feeling must be love. The tears gathered more thickly in his eyes and in the partial darkness he imagined he saw the form of a young man standing under a dripping tree. Other forms were near. His soul had approached that region where dwell the vast hosts of the dead. He was conscious of, but could not apprehend, their wayward and flickering existence. His own identity was fading out into a grey impalpable world: the solid world itself which these dead had one time reared and lived in was dissolving and dwindling. 
 A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleepily the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.
 
James Joyce, Dubliners.