segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Há pessoas cujos cabelos a dor

Há pessoas cujos cabelos a dor
embranquece de um dia para o outro
e pessoas que morrem um mês
uma semana depois de finadas
as pessoas que adoram
e ouvi mesmo falar de um cão cuja
vida acabou debaixo
do caixão de seu dono
Não vejo como algo
assim poderia acontecer comigo:
é pelas beiradas
(como tudo)
que a dor me come.

Simone Brantes in A Poesia Andando: Treze Poetas no Brasil: Antologia, Marília Garcia e Valeska de Aguirre (org.), Colecção de Poesia Inimigo Rumor, Edições Cotovia, 2008

Da cidade

Na pior das hipóteses
ainda há a chuva
que, de vez em quando,
cai sobre esse declínio civilizado.
sobre essas palavras que saem ocas.
sobre essas máquinas.

mas a chuva ainda não é nada.
a chuva atrasa, sempre.

o distúrbio dos espaços em
nosso campo de visão é minimizado.
um exasperado estrangulamento de tempo.
essa é a língua. pior: essa é a linguagem.

(ainda hoje,
no estacionamento da faculdade,
as árvores floridas
seqüestraram,
por um momento menos que mínimo,
minha atenção. e nada ficou.
nem uma cor. nem uma brisa.)

Fabiano Calixto in A Poesia Andando: Treze Poetas no Brasil: Antologia, Marília Garcia e Valeska de Aguirre (org.), Colecção de Poesia Inimigo Rumor, Edições Cotovia, 2008

Em vez de vaguear

Queria, em vez de vaguear pelas capitais embandeiradas, viver num tempo limpo e sem exasperação, em que eu pudesse ler os versos de Neruda sem me ocultar dos que têm o coração alvo demais; ou que pudesse entrar numa igreja sem que me chamem reaccionária. Porque é que uma rã, de ventre redondo e húmido, canta livremente nos arrozais e não lhe dizem: «Qual é o teu partido, o teu credo, o teu clã?» Eu não quero ser outra coisa, senão esse pequeno verde, sem gramática demasiado oficial, sem copiosos sentimentos além das estações, o medo das águias imorredoiras ou das cobras meio adormecidas.

Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula, Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira (fixação de texto), Guimarães, 2009.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Laranjópolis

Aonde estará você,
quando eu vestir o corpo
num velho sem motivos?

Nos encontraremos na fila
do filme americano?

Ou em degraus quentes
de arquibancada?

Felipe Nepomuceno in A Poesia Andando: Treze Poetas no Brasil: Antologia, Marília Garcia e Valeska de Aguirre (org.), Colecção de Poesia Inimigo Rumor, Edições Cotovia, 2008

"The King's Speech" de Tom Hooper


































O que eu achei deste filme é que ele era uma espécie de pequeno apontamento sobre os bastidores da História, pequenos pormenores que só acontecem nas antecâmaras e que são decisivos. Um rei que é gago e que precisa de discursar. Mais do que um filme sobre ultrapassar uma dificuldade pareceu-me ser um filme sobre quão vital se torna um dom de oratória quando não é possível possuí-lo e é preciso a todo o custo alcançá-lo. Está toda a gente competentemente bem, mas não vi nenhum dos actores ultrapassar-se a si próprio. À parte isso, gosto sempre de ver Londres sob o nevoeiro. E gosto do Colin Firth.

"True Grit" dos Irmãos Coen, 2010



























Uma coisa que amo nos filmes dos irmãos Coen é a fotografia. A fotografia é sempre perfeita, é sempre certa. Escolham um filme, qualquer um serve. Neste há aquele plano do Matt Damon a acender o cachimbo, sentado no alpendre, ou o corpo do pai sob a neve.

Detalhes

Te encontrar no cinema
no verso menor de um poema

numa festa na casa de amigos
em certos hábitos adquiridos:

conversar lavando pratos
cultivar um pequeno cacto

no gesto de apagar o cigarro
passar a noite dentro do carro

para te perder em seguida
em avenidas remissivas

e a sensação de nunca estar pronto
amor feito de saudade e desencontro

Augusto Massi in A Poesia Andando: Treze Poetas no Brasil: Antologia, Marília Garcia e Valeska de Aguirre (org.), Colecção de Poesia Inimigo Rumor, Edições Cotovia, 2008

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

De uma sessão em que apresentaremos o n.º2 da Ítaca e falaremos um pouco do 3 (que está quase quase)

Esta apresentação será integrada no Evento «Solar» que está a decorrer em Torres Vedras, entre 23 e 26 de Fevereiro. Mais informação aqui.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Frederico de Montefeltro, Duque de Urbino*

Por vezes a mera evocação força-nos a recordar uma coisa que para nós não existe e a sua consequente descrição. Talvez isto seja uma definição apta de imaginação ou talvez devesse servir para ser a evocação sem melancolia de coisas que nunca veremos, que passaram ou que estão fora do nosso tempo já. Assim Agustina Bessa-Luís, quando evoca Frederico de Montefeltro em Embaixada a Calígula e dele diz: «Este Frederico de Montefeltro, Duque de Urbino, com o seu olho de rapina e a tez de mouro, foi com certeza alguém que levou preocupações aos cidadãos pisanos...» Este é também um exercício de rigor, de contenção, como se nestas duas linhas se pudesse guardar o que é vital sobre o carácter de um homem pela mera alusão a um modo de olhar ou à cor de uma tez. Pensei que assim somos muito exíguos às vezes. Um curto espaço de tempo e emoção, no caso do Duque de Urbino nem sequer belo. Mas sem melancolia, como se não nos aproximássemos muito do espelho e deste modo a desilusão, a dissolução não fossem nunca possíveis ou fossem intimamente sentidas como um pequeno golpe de coração, só a mim isto aconteceu, a mais ninguém, tu nunca o saberás. Assim fica Frederico de Montefeltro, Duque de Urbino, pendurado num quadro de museu em Florença, ninguém poderia já dizer quantas dores de cabeça trouxe ele aos pisanos. A compensação é que penso que até no quadro, quando já nada se pode saber, ele continua a ser aquilo que foi, ou uma réstia do que. E ser aquilo que foi é literatura, mais do que é história. Como na descrição feita duas ou três páginas antes de uma outra personagem que penso que interessou muito mais a Agustina do que Frederico de Montefeltro, Savonarola, de quem ela escreveu: «Pode-se dizer que a Renascença inteira teve uma parte de inspiração, não nas palavras, mas na força desesperada de Savonarola.»
E não me importa que esta definição (porque não é uma afirmação sobre) de Savonarola seja discutível ou não. Quem poderia querer definir com argumentável precisão o que seja uma força desesperada?

* Sempre quis fazer um post cujo título fosse o nome deste senhor e o seu perfil de nariz adunco. Uma destas duas coisas não era possível, enfim.

Nova passante

1. sobre
esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
- sem esquecer no entanto
a boca: um
ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)

2. talvez
um poeta afogada num
danúbio imaginário dissesse
que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
- mas eu que venero (mais que o ouro verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos, sei que
tua pele pálida de papel
pede palavras de luz

3. algum
mozárabe ou andaluz
decerto
te dedicaria
um concerto
para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)

Carlito Azevedo in A Poesia Andando: Treze Poetas no Brasil: Antologia, Marília Garcia e Valeska de Aguirre (org.), Colecção de Poesia Inimigo Rumor, Edições Cotovia, 2008

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Fim de dia

Aristóteles

Pertenço a um restrito conjunto de gente tarada que se levanta às seis da manhã para ler a Retórica de Aristóteles. O professor com quem estou a estudar a Retórica disse numa aula que Aristóteles era uma máquina de pensar. Quando ele lhe chamou «máquina de pensar» eu estava ligeiramente distraída, a pensar na morte da bezerra, evidentemente, e pensei que o que ele queria dizer é que Aristóteles era muito fértil em ideias. Mas agora que me pus a reler a Retórica é muito evidente porque é que é legítimo chamar a Aristóteles «máquina de pensar». A primeira ideia, às vezes até só a partícula mínima de uma ideia, arrasta consigo incontáveis roldanas, rodas dentadas que por sua vez servem para pôr outras em movimento. Ele tem uma noção e define-a até ao infinito, em todas as suas ínfimas aplicações e consequências, para em seguida definir o contrário delas, para as rodear de exemplos e para neste jogo ficarmos com o cerne das coisas. Uma coisa arrasta sempre outra. Até Aristóteles se devia fartar do carácter excessivamente lógico e analítico de Aristóteles. O que me assusta é como de forma tão lógica alguém possa definir tão claramente o que seja sentir medo em todas as suas variantes e circunstâncias, ou ira, ou calma, ou vergonha, ou piedade, coisas que pelo seu carácter são excessivamente vastas e vagas. Um dia alguém devia escrever um romance retirado ao Livro II da Retórica. Digo que não é uma ideia tão idiota quanto parece. Ou uma pequena peça de teatro. Alguém?

Tire uma hora para ouvir falar de um Judeu de Alexandria que esteve nas Origens da Cultura Ocidental

Na próxima quinta-feira, dia 24 de Fevereiro, pelas 14.30 na sala 5.2 da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a professora Sofía Torallas Tovar, da Universidade Complutense de Madrid, dará uma lição subordinada ao tema «Língua e Cultura em Fílon de Alexandria». Esta conferência realiza-se no âmbito do Projecto «Fílon de Alexandria nas Origens da Cultura Ocidental» (FCT/CEC-FLUL).

Linguagem

soçobrando corro
ao encontro do seu horizonte
à luz das palavras
através de anos-sombra

o horizonte recua
perante o mundo
nenhuma queda livre no silêncio
por detrás assomam as palavras
chamam
pelo poema aos teus mortos

Eva Christina Zeller, Sigo a Água, Maria Teresa Dias Furtado (trad.), Relógio d'Água, 1996

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sonho

Ardem os campos
o lago bebe brasas
chove cinza na aldeia
sem estrelas a noite dilui-se
nenhuma pedra fala
em silêncio levanta-se o vento

escapei
recordo que esqueci

Eva Christina Zeller, Sigo a Água, Maria Teresa Dias Furtado (trad.), Relógio d'Água, 1996

domingo, 20 de fevereiro de 2011

find words the way one finds blackberries in the woods

Uma vez ouvi uma entrevista, penso que de Dylan Thomas, em que ele dizia que era de desconfiar de todo o jovem poeta que dissesse que escrevia por sentir ter alguma coisa a dizer ao mundo. Porque ter alguma coisa a dizer era secundário, a primeira coisa era sempre a alegria de juntar palavras, de ver o que acontecia quando determinadas palavras eram colocadas lado a lado. A imagem que me ocorreu foi a de Penélope ao tear, juntando muitos e coloridos fios, fazendo e desfazendo até ao infinito a sua teia.
A entrevista de Dylan Thomas recordou-me uma outra, de Borges, dada à Paris Review, em que o autor dizia que a poesia é uma coisa anterior à inteligência. Comparando Frost e Eliot, Borges dizia que achava o primeiro melhor poeta do que o segundo, ainda que o segundo fosse um poeta mais inteligente.
Creio que o que Borges queria dizer (e penso até que isso é verbalizado nessa mesma entrevista, que pode ser lida no volume de entrevistas da Paris Review publicado pela Tinta-da-China) não é, evidentemente, que não houvesse espaço para inteligência em poesia, é que a poesia era uma coisa anterior a isso. Penso que esta ideia é já muito antiga, é intrínseca aos poemas homéricos e, de forma mais vaga e mais difícil de explicar, aos primeiros livros da Bíblia, está implícita na teorização de Platão sobre poesia na República (o poder pressentido que faz Platão considerar a poesia algo de perigoso) e é confirmada talvez pela argumentação de Lukács em certos passos da Teoria do Romance, quando ele descreve porque é que a filosofia vem dar o golpe final na possibilidade da épica.
É deste fascínio, que Borges fala, quando diz: But I would like to make it clear that if any ideas are to be found in what I write, those ideas came after the writing. I mean, I began by the writing, I began by the story, I began with the dream, if you want to call it that. And then afterwards, perhaps, some idea came of it. But I didn’t begin, as I say, by the moral and then writing a fable to prove it.
As palavras de Dylan Thomas, no entanto, falam de oficina. Do poeta enquanto criador, só depois dessa primeira prova, talvez, é que podemos ver se há alguma coisa a ser dita, alguma coisa que valha a pena ser ouvida por alguém. Tentei opor exemplos às palavras de Dylan Thomas, exemplos que as refutassem. Lembrei-me de Brecht e da sua poesia mais comprometida - campo por excelência do querer dizer alguma coisa. Mas depois pensei num poema chamado «Recordando Marie A.» que, entre outros, demonstra que também em Brecht está a primeira, anterior à inteligência, necessária alegria de juntar palavras. Pensei então em dois versos de um livro que li esta semana: Beyond the beastly din, beyond human vanity,/ find words the way one finds blackberries in the woods. Milan Djordjevic. Encontrar palavras como quem encontra amoras pelos bosques, tacteando o que quer encontrar por entre espinhos. A conclusão a que quero chegar é evidentemente a de que Dylan Thomas e Milan Djordjevic falavam ambos do mesmo. I am a gatherer of fruit, escrevia Lawrence Ferlinghetti noutro poema. E é isto.

Quai du Louvre, Paris, 1955

sábado, 19 de fevereiro de 2011

17 Junho 85

(pela comemoração do tricentenário da Wurmlinger Kapelle)

não estava demasiado calor
os camponeses recolhiam o feno
começava a época dos morangos
passámos o dia em discórdia
as nuvens mostravam caretas
e bocas escancaradas
o dia começou ao entardecer
o crepúsculo trouxe luz
lá no alto ilumina o corpo de bombeiros

Eva Christina Zeller, Sigo a Água, Maria Teresa Dias Furtado (trad.), Relógio d'Água, 1996

VIII

Coloco as mãos onde os instrumentos colapsam.
Sou uma delinquência para o amor:
Posso extrair o mundo onde começo.

João Moita, Miasmas, Cosmorama, 2010

II

Posso começar pela minha morte,
ou posso procurar uma flor para alimentar a terra.
Sei das imagens um modo de transgredir
e sei da casa os ventos da destemperança.
Posso abrir caminho para a minha própria lição.

João Moita, Miasmas, Cosmorama, 2010

Hölderlin não esteve em Tübingen

Ele não esteve aqui
aqui nada tinha a encontrar

Não olhou pela janela
não leu nenhuns livros
nada levou consigo
não ficou de luto

Não cambaleou ao transpor a rua
não tirou o chapéu
não atravessou a ponte
não estendeu o braço à volta de nada

Ele não esteve aqui
não viveu de modo algum
ele viveu noutro lugar

Eva Christina Zeller, Sigo a Água, Maria Teresa Dias Furtado (trad.), Relógio d'Água, 1996

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

"The Fighter" de David O. Russel, 2010

























Uma coisa de que gostei neste filme é esta ideia de que o significado de toda a vida pode ser penhor de um momento (o boxe é, cinematograficamente, perfeito do ponto de vista em que cria uma forma de se filmar esse combate da forma mais literal possível), para o qual há um mecanismo de sofrimento e conquista. Outra coisa de que gostei é que não me pareceu ser tanto um filme sobre boxe ou sobre êxito mas sobre a travessia de um processo, aprendizagem por sofrimento, as pequenas formas onde se esconde a paciente conquista de um sentido para a vida.

Orange

Like the cry of a seagull in the still air
above the empty beach where dark algae are drying,
The bluish bade cuts into her skin.

My fingers bare the nakedness of the orange lamp
so that with a scent of Crete it may light my room,
the way fresh water sprinkles a dry plant.

Milan Djordjevic, Oranges and Snow: Selected Poems, Charles Simic (trad.), Princeton University Press, 2010

"The Fighter" segundo Joyce Carol Oates

The subjects of these films are not boxers of the quality of the young, dazzling Mike Tyson or the legendary Muhammad Ali, Sugar Ray Robinson, or Joe Louis but journeyman fighters who’ve managed through sheer effort to win just a little more often than they’ve lost. Poor Micky isn’t even, by nature, aggressive; he’s far from the “raging bull” counterpuncher Jake LaMotta of Martin Scorsese’s film, so desperate in his ring stratagems that even his victories have an air of the haphazard and the tentative. (...) Like Clint Eastwood’s Million Dollar Baby (2004), a similar amalgam of gritty pathos, unabashed sentiment, and very good boxing footage that earned accolades for its principal actors, Eastwood and Hilary Swank, The Fighter is, if not a champion film for all time, a very good, poignant, and commendable expression of its era—postindustrial working-class urban America, bereft of history as it is bereft of jobs, strong unions, pride in one’s work. Lowell, Massachusetts, is the ideal setting for this modest fairy tale of an underdog who finally comes out on top—if but temporarily, and with what cost to him, no one quite knows or seems to care. Boxing may be cruel and pitiless to its most ardent practitioners, but bountiful to its gifted chroniclers.

The Game

for Dragan Velikic

He laughed because he was able to be everything and nothing.
He played, threw rocks at street lights,
wore out his sneakers on the concret playground,
scraped his knees, ran away from home along the river,
stood at the edge of a cliff, entered a cave.
From the cage of his childhood he walked out suddenly
and again played: traveled, drank retsina
on the beach in Salonika, tasted the pleasures of summer,
stood trembling in a room over an unclothed Russian girl.
Now he plays without words, without laughter or anger,
shocked by human stupidity and cruelty.
He yearns for the ripeness of October afternoons
with their diamond-like icy and silent perfection
at the conclusion of this tired century - our loathsome lair.

Milan Djordjevic, Oranges and Snow: Selected Poems, Charles Simic (trad.), Princeton University Press, 2010

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Sem causa


Waking

He woke after a nightmarish night,
his face lit up with clear light and scents.
To rise refreshed out of bed, pronounce
the first, hoary words, say them
with tenderness, babbling as a child would,
and like the early snow caress the ones still sleeping.
To be hungry and to rejoice, how simple that is.
Inhale black coffee and the crispness of rolls.
Beyond the beastly din, beyond human vanity,
find words the way one finds blackberries in the woods.
And, hopefully, grow old as the day grows old,
as the plant seeds ripen in August,
or the wine in the darkness of a barrel,
and in this hour find what is deathless.

Milan Djordjevic, Oranges and Snow: Selected Poems, Charles Simic (trad.), Princeton University Press, 2010

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Capa linda


Revista Agio

A nova revista da Artefacto. Pelo alinhamento, diríamos que o nr.º1 promete.

The last definitive word for the whole story

The subject of Broch's book, as the title indicates, is the last twenty four hours of Virgil's life. But death is treated not merely as an event but as the last achviement of man - whether in the sense that moments of dying are  one's last and only chance for knowing what life was all about or in the sense that it is then that one passes judgement upon one's own life. This judgement is not self-accusation, for it is too late for that, nor self-justification, for it is, in a way, too early for that; it is the ultimate effort to find the truth, the last definitive word for the whole story.

Hannah Arendt, sobre o livro de Hermann Broch A Morte de Vergílio, "No Longer and Not Yet", Reflections on Literature and Culture, Stanford University Press, 2007.

Suave mari magno

É uma expressão com que poderíamos falar sobre o modo como a chuva está a cair e nós estamos a ver.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Como estás, amigo?

"Como estás, amigo?", decimos al que nos acerca; y en aquel momento, por obra del lenguaje común, el aire que nuestra voz ha estremecido tenuemente - tres palabras: tres breves golpecitos de aire inquieto - contiene, en levíssimo esboço, el fundamento humano de la historia universal. Dos soledades se han hecho compañía.

Pedro Laín Entralgo, talvez num livro chamado Teoría y Realidad del Otro.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Dois versos para o caminho

como a viração do mar,
como o aroma das flores.

Juan Rámon Jimenez, Antologia Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 1992

sábado, 12 de fevereiro de 2011

"They live by night" de Nicholas Ray, 1949


Catedral de Toledo

De toda esta profusão de tesouros fica-nos uma impressão que não acertamos a exprimir. Fernando III disse, quando entre tesoureiros e arquitectos, se propôs erguer a Catedral de Toledo: «Hagamos una fábrica tal que nuestros descendientes nos tengan por locos.» Mas não pensamos hoje que fossem loucos os seus construtores e os que a inspiraram. É uma obra que afirma a maturidade dum reino, com a sua sociedade de cavaleiros, a sua determinação que se chamará espírito épico, a sua rasgada forma de actuar: «Que nuestros descendientes nos tengan por locos.» É estranho pensar que nem um só povo do mundo seria hoje capaz de um voto assim, de enfrentar assim as idades que lhe sucederão, mas antes se encostam uns aos outros e copiam sisudamente as suas civilizações, desgostosos quando se acham pobres, incapazes quando se julgam ultrapassados. «Sejamos razoáveis» - dizem, suavemente. Razoáveis no ódio e no pecado, tímidos no empreender, frouxos no amar, desconfiados no sentir, cobardes no julgar. No entanto, que catedrais estão suspensas da nossa mão, que capelas estão por edificar no coração das criaturas, que torres para levantar e que portas para abrir! «Façamos uma obra tal que os nossos descendentes nos tenham por loucos.» Desertemos da razão avelhantada e fútil em que andamos, deixemos de lado as capas de burocratas, tomemos do pensamento o novo e o que não foi tentado ainda, e não ponhamos reflexão onde devia estar sabedoria - porque se a sabedoria é, acima de tudo, actividade, a reflexão é pessimismo, e malícia muitas e muitas vezes.

Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula, Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira (fixação de texto), Guimarães, 2009

109

Virá um dia um homem
que, lançado sobre ti, tente despir-te
do teu luto de ignota,
- palavra minha, hoje tão nua, tão clara!
Um homem que te creia
sombra feita água de delgado murmúrio,
a ti, voz minha, água
de luz tão simples!

Juan Rámon Jimenez, Antologia Poética, José Bento (trad.), Relógio d'Água, 1992

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

"Gosford Park" de Robert Altman, 2001

Para nós também


Argos

Tive em tempos um conto preferido. Era aquele de Borges: «A cidade dos imortais». Plotline: um Romano, ao fim de muito tempo perdido em buscas, chega a uma cidade que é povoada por imortais, lá, um imortal segue-o para toda a  parte. Ligeiramente incomodado pela presença, sempre silenciosa, o homem dá-lhe o nome de Argos, como o cão de Ulisses na Odisseia. Um dia, já não me lembro porquê, Argos resolve fugir. O Romano persegue-o, gritando: «Argos, Argos, Argos, volta.» Ao que o imortal responde qualquer coisa como: «Raios, homem, porque me chamas Argos? Foi há tanto tempo já que escrevi a Odisseia
A princípio, gostava deste conto por causa da adrelina da revelação: Argos é Homero e é como se o Romano fosse trespassado por aquela revelação. Há uns tempos tentei, nem sei porquê, recordar-me de todo o argumento do conto. Mas a única coisa que me ficara tinha sido só isto, esta frase final. Mas agora já não a vejo só do ponto de vista do espanto, do espectacular, ou seja, do ponto de vista do Romano. Agora posso pensar o desencanto de Argos. Naquele momento em que ele se vira para trás e diz: «Porque me chamas Argos? Foi há tanto tempo já escrevi a Odisseia.» é como se dissesse que até essa tarefa, a do poema, se perde para sempre no tempo, ou para quem a empreendeu, de nada vale passado um tempo. A Odisseia é uma vaga e cinzenta memória para um homem de mãos cinzentas que acaba a ser chamado Argos quando em tempos se chamou Homero. E tal é o tempo. Mas permanece para o outro o trespasse dessa revelação. O que me faz pensar em outra coisa, numa conferência dada em tempos por Borges e que ficou compilada no livro Este Ofício de Poeta, em que ele fala da imortalidade do canto, porque pensa que a ficção existirá sempre e prevê que, ainda que morra o romance, o conto continue a existir, de forma análoga aos cantares dos aedos na Grécia. E tudo isto me lembrou Leonard Cohen e uma entrevista dada à CBS (salvo erro em 1964), em que ele dizia que não lhe importava nada saber se o que estava a escrever ia durar ou não, se ia ser aclamado ou não, deixando implícito que precisava apenas de o fazer. A dissociação é afinal a mesma do Argos de Borges: «quanto tempo? muito. inúmero. podemos apenas vivê-lo, não ver para além dele.»

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

An uncertain time after Patmos*

we heard and remained: the islands
won't come they won't
wait                 at the light-blue
twilight
        you step your foot
on culture dry as milk
we wait and             we drink
to dance, spirits and lose the snow
hiding our purpose. if you had the dead
flowers in your hairskin rendezvous
with the past,       if you wait
and it comes with the golem
we wrote, some giotto
criminal        with the word
no one speaks–  eleven stars
from marburg, each god
pathetic, just like schubert
would have wanted it.
               who is the third, the false
beginning? sometimes in seas
   of ghosts turned athletes
      a fire flows downwards, graceful.

Miguel Monteiro, in Pedra da Ponte.

*Conta-se que o vate, depois de pousar a lira no chão e limpar o suor da testa, inevitável sinal do cansaço de dizer o poema, se terá virado para a audiência e proferido uma mensagem que alguns julgam terem sido qualquer coisa como: «Vamos lá a acalmar.»

O Escorial

O Escorial fala-nos de disciplina, essa paixão dos homens tímidos em relação ao próprio destino. 
Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula, Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira (fixação de texto), Guimarães, 2009

Um dia será assim:


terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A arte dialéctica é mais bela quando

toma uma alma apta e nela planta e semeia discursos com entendimento – discursos capazes de vir em socorro de si mesmos e de quem os plantou, não improdutivos mas possuidores de gérmen, de que mais discursos nascem em outros temperamentos e podem tornar para sempre essa semente imortal, e assim conceder ao seu detentor o mais alto grau de felicidade que um ser humano pode ter.  
Platão/Sócrates, Fedro, 277a, José Ribeiro Ferreira (trad.), Edições 70, 1997.

A paixão do jovem...


As novas edições da obra de Elizabeth Bishop

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Vidas Paralelas: Alcibíades & José Mourinho

Quando pensava que já tinha visto tudo...

estate violenta

para Joseph K., tendo em conta que, como disse
Kierkegaard, citado por Agustina,
«Quando alguém escreve acerca dos acontecimentos
da sua própria vida, é regra de delicadeza
não dizer nunca a verdade, mas reservá-la para si
e permitir que só se reflicta de diversos ângulos.»

   

I

como no poema de eugenio montale pensas agora
que subiram milhares de escadas de braço dado
imaginas nunca estarás certo que baste que dançaram
juntos através de todas as salas vazias destes
palácios desfeitos pela manhã os teus braços
em torno da sua cintura as mãos dela sobre os teus ombros

II

imaginas que talvez tivessem conversado entre intervalos
de música ou que já aí tivesses pressentido que o mar te cercava
que estava em torno de toda a casa que a árdua respiração
do vento àquela hora lançava contra as janelas mãos de areia
que a música te impedia de ouvir mas o que acontecia
era apenas a rapariga a segurar-te pelos ombros

III

como as marés no princípio das manhãs
as coisas que tememos esvanecem-se vão
para outros lugares tornaremos apenas a convocá-las
mais tarde todo esse exército de soldadinhos de chumbo
que de manhã afundaremos em água e deixaremos bater no fundo

IV

tornaremos a convocá-las apenas em caso de extrema necessidade
mas o que é a extrema necessidade de uma coisa que nos fira
não poderias dizê-lo não é sobre nada vantagem não é conhecimento
não tem a leveza de pés de rapariga que dançassem em
rasos sapatos pretos é um húmus que sobre o nosso chão está
e nada daí poderia ter nascido é uma maneira de noite
por isso de noite erras pela cidade atravessas as linhas de comboio
até ao mar em que quarto vazio poderias estar a dançar agora?

V

pensas que terão dançado como as personagens daquele filme de zurlini
conservamos o corpo depois de ter dançado mas o poema
depois de lido como disse leonard cohen contra homero
esvanece-se mas leonard cohen enganou-se um pouco porque
em algum lugar deve continuar a ser verdade que desci milhares
de escadas de braço dado contigo que em algum lugar o outro verso
de montale tal como o corrompemos continua a fazer sentido
«eu sei que devo perder-te [de novo] e não posso»
pois nem tudo se perde ficará a consolação de saber
que alguns poemas nos explicam

VI

e pensas que é estranho que não te possam exonerar
de sentir dor é estranho que algumas palavras não cumpram
a higiénica função de nos vestir que nos deixem mais sós
mais diante de nós nos espelhos palavras
que de toda a porcaria nos dispam nos deixem mais junto
ao coração da vida que como todos sabemos fica no chão
por isso encostas o ouvido ao solo como nos westerns
os fugitivos à espera de ouvir o comboio
de antecipar um sinal do que se segue
a angústia às vezes parece-se com isto
coisas  que não podemos ouvir nem ver mas que
fatalmente em algum lugar sabemos que nos esperam
como os pés dela nos sapatos pretos baixos contra o chão
quando dançaram como personagens de zurlini ou apenas
como gente porque quanto menos significado melhor e o melhor
às vezes é que não nos assemelhemos a nada a ninguém

VII

e podes continuar a sentir-te cercado pelo mar
sem que nenhum mar te cerque podes esgotar
todos os caminhos da noite antes de tudo recomeçar
virá a manhã como um resgate e o café feito de novo
e terás na boca um gosto amargo que em breve se sumirá
à medida que enches de água a cafeteira e deitas café
no filtro e vês na janela uma mulher a estender em cordas lençóis
e todas as coisas que recordas se somem e tu respiras
como se estivesses em casa de novo e pela primeira vez
e nenhuma palavra te tivesse sido escrita na testa
e nenhum sinal pudesse permitir um reconhecimento
futuro e assim deo gratias é tarde terminemos

Tatiana Faia

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Pequena raça

Little race living for a day
clamorous with pain,
see how fate presses 
steadily against your hopes!
With length of years
a man runs trough his share of sorrows -
to live is to have 
no certainty

Eurípides, «Orestes», The Complete Euripides, vol. II, John Peck & Frank Nisetich, Oxford University Press, 2010.

Coney Island

























O resto está aqui.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ver

Menelaos: What is it? What sickness is destroying you?
Orestes: My own mind. It sees what I did.

Μενέλαος: τί χρῆμα πάσχεις; τίς σ᾽ ἀπόλλυσιν νόσος;*  
Ὀρέστης: ἡ σύνεσις, ὅτι σύνοιδα δείν᾽ εἰργασμένος.

Eurípides, «Orestes», The Complete Euripides, vol. II, John Peck & Frank Nisetich, Oxford University Press, 2010.

*O texto grego reproduzido é o da edição de Gilbert Murray, o mesmo utilizado pelos tradutores.

Uma moeda de prata

Numa das cenas da Electra (de Eurípides), Orestes, pouco antes de ser reconhecido, diz ao antigo tutor do seu pai: «porque estudas o meu rosto como uma moeda de prata?». Na cena imediatamente anterior, Electra é tentada pelo camponês a quem fora confiada a reconhecer uma semelhança entre ela e o irmão em três objectos diferentes: a madeixa de cabelo que instantes antes fora depositada por um piedoso anónimo no túmulo de Agamémnon; no rasto de pegadas aí deixado; em qualquer peça de roupa que ela lhe pudesse ter dado quando ambos eram ainda crianças. Electra não encontra em nada disto semelhança rigorosamente nenhuma: o cabelo das mulheres cresce de modo diferente do dos homens; os pés dos homens são maiores; quando ela e o irmão se separaram eram tão jovens que nenhuma roupa que pudessem ter trocado lhe serviria agora. 
Na procura de um sentido para o sinal de uma presença, Electra  não vê nada e, sobretudo, não alimenta esperança nenhuma. É o ancião, que estuda o rosto de Orestes como se fosse «uma moeda de prata», que o há-de reconhecer, por meio de uma cicatriz no rosto, ferida feita em criança, numa qualquer brincadeira com Electra.
Penso que a cicatriz, assunto que pende entre os dois irmãos, tem um sentido duplo: ao mesmo tempo remete para proximidade entre ambos que existia já quando eram crianças e que fora interrompida (como uma ferida que se abre) e ao mesmo tempo é a marca quase invisível que torna Orestes inconfundível para quem o conhecesse. Os outros sinais que o acompanham, que o pudessem unir a Electra, tamanho dos pés, cabelo, roupa, são transitórios, contingentes. Orestes não poderia ser reconhecido em Argos por outra coisa que não uma marca na pele, um corte outrora feito na carne. E nisto penso que há uma semelhança, vaga, muito remota, com a forma como Ulisses é reconhecido em sua própria casa (a cicatriz no joelho, a este propósito cf. Erich Auerbach: «A cicatriz de Ulisses»). Uma forma perfeita de dizer que muito poucas coisas são de facto essenciais para que em tua casa te reconheçam. Por isso a Electra de Eurípides é este objecto ambíguo, oscilando entre o terrível (o acto por que/ para que estes dois irmãos se juntam de novo) e o terno (o amor que os une: cf. os versos em que se despedem um do outro), é, em última análise, um poema perfeitamente escrito na linha divisória entre a noite e o dia.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011


Nenhum terror

Electra: No terror one can name -
no suffering of any kind, no not even
affliction sent by a god, is so terrible
that human nature can't take it on.

Eurípides, «Orestes», The Complete Euripides, vol. II, John Peck & Frank Nisetich, Oxford University Press, 2010

Καλός καλός καλός

Electra: Hold me close, brother, let me hold you.
Oh how I love you!
One from the other, both from our home,
we're torn (...)


Ἠλέκτρα: περί μοι στέρνοις στέρνα πρόσαψον,
σύγγονε φίλτατε:
διὰ γὰρ ζευγνῦσ᾽ ἡμᾶς πατρίων
μελάθρων (...)

Estes são os versos com que Electra se despede de Orestes, na Electra de Eurípides. A tradução é a de Janet Lembke e Kenneth J. Reckford (The Complete Euripides, vol. II, Oxford University Press, 2010), o texto grego utilizado pelos tradutores é o de James Diggle (Oxford Classical Texts, 1981), nós reproduzimos aqui o que foi fixado Gilbert Murray e se encontra disponível no Perseus Digital Library (vv. 1321-1324). O grande defeito desta nova edição das tragédias completas de Eurípides feita pela Oxford, tanto quanto me parece, é o facto de não ser bilingue, o que, por outro lado, acarreta a vantagem de os livros não se tornarem demasiado volumosos (i.e., são transportáveis). Até agora, das tragédias lidas, diria que não só as traduções se lêem como óptima poesia  (porque todas as traduções são em verso, há uma preocupação com manter um certo ritmo, etc.) como me parecem ser perfeitamente representáveis em língua inglesa.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Chorus:

I wish you joy. To spend life's fleeting days
mid joy that never meets an evil hour
is to be blessed beyond compare.

Estes são os três últimos versos da Electra de Eurípides, na tradução de Janet Lembke e Kenneth J. Reckford, em edição publicada pela Oxford University Press (The Complete Euripides, vol. II) no ano de 2010.

Manarola, Itália


Orpheu e Eurydice

Juntos passavam no cair da tarde
Jovens luminosos muito antigos

Sophia, Musa, Caminho, 2004