domingo, 31 de janeiro de 2010

Why is it that all men who have become outstanding in philosophy, statesmanship, poetry or the arts are melancholic, and some to such an extent that they are infected by the diseases arising from black bile as the story of Heracles among the heroes tells?

(Pseudo-)Aristóteles, «Problema XXX» (tradução de W.S. Hett em Problems. vol. XV, Rethorica ad Alexandrum, Loeb Classical Library, 1937)Negrito

Visão vinte e cinco

E eis que a mulher aparece dentro da sombra,
largando o sangue entre as árvores, e é o seu
corpo visível que se transforma e se deixa levar
pela noite, esquecendo que a sua alma está
presa ao homem que a algemou para sempre.

Não é ele que eu vejo, espanta-se o pedreiro.
E as mãos dele enlouquecem até à exaustão.

Uma coisa nada humana sai do tronco de um
sicómoro. É a mulher esvaindo-se em cinza,
uma borboleta esmagada por um cilindro.
Porque era tarde demais e o amor do homem,
tal como as aves, morreu com o esplendor
das últimas uvas.

Jaime Rocha, Os que Vão Morrer, Relógio d'Água, 2000

Gary Cooper

Em tempos sombrios

Mas até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver alguma luz, e é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e dos conceitos como da chama incerta, vacilante, e muitas vezes ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo (...).

Hannah Arendt, Homens em Tempos Sombrios, Ana Luísa Faria (trad.), Relógio d'Água, 1991

sábado, 30 de janeiro de 2010

Uma cena de «Suddenly, Last Summer» de Joseph Mankiewicz, 1959


Ontem vi finalmente Suddenly, Last Summer, que me parece ser um filme perfeito do ponto de vista das interpretações e do argumento (o texto original é de Tenessee Williams, o argumento de Gore Vidal e Tenessee Williams). Espécie de meio caminho entre um Rei Édipo e as Bacantes. É difícil decidir de quem é a melhor interpretação, se a de Elizabeth Taylor ou se a de Katharine Hepburn.
Parti para o movimento da água
para o nome deste barco
premeditado incêndio de um corpo
de vigília e festas.

A aspereza é o nome
o acordado corpo
a incerteza o escreve.

João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho, Na Regra do Jogo, 1982
Corpo magoado rápido de passos
e ferido.

É o nome que levo.

*

Olhar limpo tudo
o que não vai morrer
connosco.

João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho, Na Regra do Jogo, 1982

Montgomery Clift

Outro segredo corre o rosto.

Fundámos uma história de água
entre nós e o mês de junho.

A pedra o nome
dos que têm esta terra
outro segredo.

João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho, Na Regra do Jogo, 1982

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Senhor Gregory Peck e um Livro

Das nossas mãos que restará fazer?

Quem há-de lembrar
a cadeira a porta a árvore?

Pousando o tempo sobre o nosso sangue
pousando o sangue sobre o nosso corpo
das nossas mãos que restará fazer?

João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho, Na Regra do Jogo, 1982

O irmão gémeo
























Apresento-vos o irmão gémeo da Ilíada e do Guerra e Paz, versão short-stories. Recomendo-a nesta edição da Norton, porque a tradução é muito boa, embora o projecto gráfico seja desastroso.

The catcher in the rye

























J.D. Salinger (1919 - 2010)
Arma antiga o corpo
para o fogo
areia de muralha adivinhando
furor e vento outro sentido.

Sobre a memória
coisas de morte ou de silêncio
pousam devagar sobre as espáduas.

João Miguel Fernandes Jorge, À Beira do Mar de Junho, Na Regra do Jogo, 1982.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Do traduzir em linguagem


«Por que muitos que som leterados nom sabem trelladar bem de latim em linguagem, pensei escrever estes avisamentos pera ello necessarios.

Primeiro, conhecer bem a sentença do que ha de tornar e poê-la enteiramente, nom mudando, acrecentando, nem minguando algũa cousa do que está scripto.

O segundo, que nom ponha pallavras latinadas nem doutra linguagem, mas que todo seja em nosso linguagem scripto, mais achegadamente ao geeral boõ custume de nosso fallar que se poder fazer.

O terceiro, que sempre se ponham pallavras que sejam dereita linguagem, respondentes ao latim, nom mudando hũas por outras, assi que onde el disser per latim "scorregar", nom ponha "afastar", e assi em outras semelhantes, entendendo que tanto monta hũa como a outra; por que grande deferença faz, pera se bem entender, seerem estas pallavras propriamente scriptas.

O quarto, que nom ponha pallavras que, segundo o nosso custume de fallar, sejam avidas por desonestas.

O quinto, que guarde aquella ordem que igualmente deve guardar em qual quer outra cousa que se screver deva, scilicet: que screva cousas de boa sustancia, claramente, pera se bem poder entender, e fremoso o mais que elle poder, e curtamente quanto for necessario. E pera esto aproveita muito parragrafar e apontar bem.

(...)

E por que, per vosso requerimento, tornei em linguagem simprezmente rimada de seis pees de huũ consoante a oraçom de "justo juiz Jesu Cristo", vo-la fiz aqui screver, a qual, por a fazer consoar, nom pode compridamente dar seu linguagem, nem a fiz em outra milhor forma, por concordar com a maneira e teençom que era feicta em latim.

Justo juiz Jesu Cristo,
Rei dos Rex e boõ senhor,
que coo padre reinas sempre,
hu he d'ambos huũ
amor:
praza-te de me ouvir
pois me sento pecador.

Tu que do ceeo descendisti
enno ventre virginal,
hu, tomando logo carne,
livraste o segre de mal,
per teu sangue precioso
de perdiçom eternal

...

E traladei do livro dos Stabellicimentos de sam Joham Casiano, por exempro, esta parte de huũ capitollo ajuso scripto, ao pee da letera, que chamam os leterados "a contexto", o qual a alguũs nom muito praz, por seer scripto na maneira latinada. E queriam que se tirasse a sentença posta em mais geeral maneira de fallar. E outros dizem que bem lhes parece.

Porem, quando mandardes tornar algũa leitura de latim em nossa linguagem, a maneira que mais vos prouver mandaae que tenha aquel que dello tever carrego.»


D. Duarte (1391-1438), Leal Conselheiro
ed. F. Costa Marques, Lisboa, 1942
A caminho.

Poema cinco no Anfiteatro

Um comboio passa por um espelho e desfaz-se
na memória da pedra. Um homem entra na arena
vindo de um lago, o seu manto azul traz um risco
de sangue como se uma alga vivesse agarrada
aos seus ombros. É o momento da assombração,
uma mulher inclina-se para o sol e o seu corpo
transforma-se num mosaico. Os barcos dançam,
as ondas espalham-se pelas ameias devorando
o anfiteatro. São agora dois os homens e ambos
esmagam as mãos sacrificando-as às aves da noite.
Os seus olhos não alcançam mais do que um corpo
correndo no alto das colinas. O jogo continua, ninguém
vê já os contornos das árvores por detrás das muralhas.
Nem um fumo rasteiro deixado por esse vulto que cai
devagar pelos degraus e enlouquece.

Jaime Rocha, Os que Vão Morrer, Relógio d'Água, 2000

O que por vezes me irrita na bibliografia passiva é ela armar-se em activa

«Deixemos que o sol, a lua, a água, mas também o lobo ou a Morte nos digam pela sua simples presença a plenitude de um sentido que nós perturbamos pelo simples olhar.»
(Ontem à noite confundi isto com uns versos de Alberto Caeiro, hoje de manhã descubro que afinal se trata de Eduardo Lourenço a escrever sobre Caeiro.)
«Ficção do ser do eu, ou do eu como ser, ficção do universo como ser ou do ser do universo, ficção do ser de Deus ou de Deus como ser.»
(Podia ser um daqueles passos em código do Ulisses de Joyce, mas afinal é Eduardo Lourenço a falar-nos de heteronímia.)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Visão cinco

Ali começava o paraíso, dizia ele. E toda
a gente sabia que era de Missolunghi
que ele falava. Na Grécia. Mas o corpo
dela estava frio, preso a uma tenaz.
E uma aranha entrava-lhe pela palma
da mão. Quando terminou a muralha,
deixou que a humidade lhe penetrasse
no corpo e só então o escondeu. Limpou-o
como se lavasse uma estátua e as suas
mãos percorreram-lhe os ombros
e o peito pela última vez. A mulher
mexeu-se ao avistar um barco. Era
a sua memória que pedia socorro.
Mas já o homem a enlaçava com
uma corda e a preparava para a noite.

Jaime Rocha, Os que Vão Morrer, Relógio d'Água, 2000.

Ítaca

A salsa, o lúcio não têm pressa
e o fio de azeite aprende a esperar.
Cada dia que passa, não sei como é -
jantamos mais tarde. Precisa uma casa
de ter quem a viva, quem reze por ela,
por isso te espero de roupa no chão,
sem nada vestido debaixo da pele.

Abrimos a água, enxugo-te o rosto
podemos agora deixar de mentir.
Só com o corpo, relógio parado,
deixámos o mundo a rugir no escuro.
Urtiga nenhuma nos vai separar.
Ouvimos o sulco da garra na porta
e rimo-nos baixo. Não sei como é -
cada dia que passa jantamos mais tarde.

José Miguel Silva, Ulisses já Não Mora Aqui, & etc, 2002

Nocturno

A arte já sabemos nasce
da imperfeição das coisas
que trazemos para casa
com o pó da rua
quando a tarde finda
e não temos água quente
para lavar a cabeça.

Tentamos regular
com açudes de orações
o curso da tristeza
mudamos de cadeira
e levamos a noite
a dizer oxalá
como se a palavra
praticasse anestesia.

José Miguel Silva, Ulisses já não Mora Aqui, & etc, 2002

(Com o devido agradecimento pelo empréstimo.)

Ítaca, Cartaz (III)

Efémero

«O poeta admirava a beleza da natureza circundante, mas sem se deleitar. O pensamento de que toda aquela beleza estava votada ao desaparecimento perturbava-o, que no Inverno ela estaria desvanecida, como acontece, de resto com toda a beleza humana, e com tudo o que os homens criaram ou podiam ter criado de belo e de nobre. Tudo o que, de outro modo, ele poderia ter amado e admirado lhe parecia desvalorizado pelo destino efémero ao qual tudo aquilo estava prometido.»

Freud,Vergänglichtkeit, 1916

Eu acredito que a condição efémera da beleza contribui para a tornar ainda mais bela. Por doloroso e, lá está, melancólico que seja.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Ítaca, Cartazes (II)
























(Sobre fotografia de Ricardo Ávila.)

Uma cena de «How to steal a million» de William Wyler, 1966

Espreito na noite esses focinhos... Terão rosto?
...desalojo as sombras, os clarões, o vazio dos olhos,
desenterro uma alma, qualquer coisa, uma lágrima,
a esperança de um remorso, de um coração que cede...
Mas onde estão os olhos? Onde sorriem?
Vejo-os mortos parecendo terem vida
e seguem com um ferro no lugar do coração,
ouço-os quando passam pela rua
como se sente o frio ou o ar que esmorece...
Para onde me voltar?, parece que se vai
a vontade de viver quando eles passam...
E então fujo deles e fujo de mim mesmo,
sigo por aí à procura desses rostos...
Mas ao meu desencontro vem o medo
de ser um deles, de ter entrado
na sombra onda nada se despenha,
na névoa onde os homens só têm piedade.

Franco Loi, Memória, António Osório (coord.), Quetzal Editores, 1993

Estão a sair os cartazes da Ítaca



savesave

Ele jura que não mijará o Herberto



















Armar-se em esperto é outra história...
Oh, Itália louca de gente que se foi,
amigos que se encontravam pelas ruas,
raparigas das frescas, belas pernas, bela raça
que me fazia viver do seu falar,
aves que sobre nós se enamoravam,
canções no sol, bicicletas e eléctricos:
agora estou só e à escuta da memória
que vem do dolorido da cidade,
e dentro tenho, antiga, a paciência,
falo com as árvores e o céu está sobre mim,
leve como o ser vento de um falcão
que a fome traz de longe à nossa vida.

Franco Loi, Memória, António Osório (coord.), Quetzal Editores, 1993


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O Cardeal "Tutti Fruti"

O Cardeal Patriarca de Lisboa diz estes disparates. Digo "disparates" não porque discorde do senhor, simplesmente porque não há quase nada para discordar, e com o pouco que há, sim senhor, discordo. Pelo estilo o Cardeal Patriarca enraiza-se na má tradição católica dogmática (com profundas relações históricas com o jargão político e a tagarelice académica): as suas palavras são inatacáveis pois não significam nada, não há nada para atacar.

“Ajudar a família é, antes de mais, respeitá-la na sua dignidade e na sua natureza antropológica de instituição baseada no contrato entre um homem e uma mulher, que origine uma comunidade específica, onde acontece a procriação e a caminhada em conjunto na descoberta da vida.”
Vamos tentar ler esta frase e juntar os seus constituintes semânticos, como se fosse um puzzle:

"Ajudar a família": Ajudar qual família? A sagrada família? A ideia (platónica) de família? Suponho que a ideia social de família, a construção abstracta que uma parte maioritária da sociedade reconhece como típica. Adiantemos um referente provisório: a ideia de um casal heterossexual com rebentos. Não foi fácil aqui chegar. Mas não estou a ver de que forma esta família hipotética possa ser "ajudada". Podem-se ajudar famílias concretas, não famílias abstractas. Ou então o Sr. cardeal patriarca está a falar de uma outra família qualquer e eu sou parvo (o que, em qualquer dos casos, não desminto.)

Esta nebulosa família é "ajudada" "respeitando-a na sua dignidade". Nova pausa. Inspiração profunda. Em que consiste "respeitar uma [hipotética] família na sua dignidade"? Suponho que o Sr. Cardeal responderia "não permitindo que pessoas do mesmo sexo pudessem casar". O que de facto é um desrespeito para muitas famílias reais, pessoas do mesmo sexo que vivem juntas há muitos anos, e que em muitos casos criaram filhos juntos. Prosseguindo.

"respeitá-la (...) na sua natureza antropológica de instituição baseada no contrato entre um homem e uma mulher"
A única paráfrase que me ocorre para este bizantinice enfumarada é "repudiar qualquer união não baseada no "contrato entre um homem e uma mulher"". Se alguém arranja melhor não se coíba. "[N]atureza antropológica" é um achado. "[I]nstituição baseada no contrato entre um homem e uma mulher" glosa uma definição ultrapassada de casamento, para além de que a coloração legal ("instituição", "contrato") soa grotesca. Mas ao menos corresponde a uma estratégia retórica coerente: por um lado dizer o mínimo possível em muitas palavras, por outro disfarçar com "boas" palavras ("respeito", "dignidade", "família") um ataque dogmático e infundado contra o casamento homossexual. Pois se exorta ao "respeito" pela "família" é porque está a ser "desrespeitada". Por quem? Pelo casamento homossexual. Como? Só deus sabe.

Chegado a este ponto, vejo que o post vai longo e eu não tenho muita paciência para o continuar. O resto da frase, bem como as demais declarações, são banalidades pomposas e qualquer pessoa com dois dedos de testa vê isso.
Termino com uma breve nota etimológica, que será do agrado do Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, pois outrora leccionou Grego. "Policarpo" é formado por dois compostos gregos: πολυ-, "muito", e καρπός, "fruto", e significa algo como "de muitos frutos", o que a alguns poderá parecer um nome desaconselhável para um membro do clero. Entre os seus estudantes a sua alcunha era "o Tutti Fruti". O que, convenhamos, é algo um tanto ou quanto abichanado. Convido o leitor que teve paciência para chegar a este ponto deste post longo e confuso para reler o texto, substituindo onde se lê "Cardeal Patriarca de Lisboa" por "Cardeal Tutti Fruti".

Nota: Cheguei ao artigo do Público através deste post de José Miguel Silva.
Espaço online da Ítaca, actualizado aqui.

Melencolia I

































Dürer, Melencolia I (1514)

De todas as coisas que esta obra de Dürer me podia lembrar, lembra-me uns versos de García Lorca, de um poema chamado «Duna»:«Por el mar de la luz/dónde voy/ A quién busco?/Aquì gime el reflejo de las lunas veladas.»

«A Barreira Invisível» - Terrence Malick (1998)

1.
O último graduado a saber de cor
passagens inteiras da Ilíada foi o valente
soldado Ernst, em mil novecentos
e dezassete. Mas esse era um romântico
alemão, caçador de besouros.

Nós, em Guadalcanal, anos depois,
o que tínhamos era sobretudo medo de cair
em desgraça perante o nosso deus,
que não era Marte nem Apolo mas um homem
que se ria de tudo isso: a cólera, o brio,
o ethos violento dos cabreiros de Rodes,
de Tróia, do Peloponeso.

Ria-se a figura do nosso deus, do nosso lar,
entre lágrimas de barro, mas eu não o ouvia,
nem tu. Pois havia que matar, ainda que
sem fé; havia que morrer, mesmo sem
perdão. Entre todos, perfazíamos centenas
de sintomas isolados. Cada um agarrava-se
àquilo que tinha: a barra do beliche,
um punhado de cartas, o pano ainda virgem
do idealismo, a crista humedecida dos joelhos.

2.
É difícil caminhar sobre uma linha invisível,
uma linha de água, entre o mal e o mal. Dividido
pelo sangue que atravessa os pensamentos, do inferno
ao paraíso, com o chumbo atravessado na memória,
os bolsos pesarosos de letais pressentimentos,
caminha sobre as águas quem caminha sobre si.
Por isso é tão difícil caminhar sobre as águas.

José Miguel Silva, Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005

Uma música de Shigeru Umebayashi, III

Trabalho de semestre

Dou por mim a escrever disparates como «a ausência de um rumo», «o lugar do sujeito na aporia vem de trás, do passado» e outro tipo de expressões que eu não acredito que ajudem seja quem for a perceber seja o que for sobre determinado poema (eu própria incluída). A ironia é haver todo um código figurativo num trabalho sobre literatura e melancolia que a mim própria me enche de melancolia.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Uma música de Shigeru Umebayashi, II

...e fu per sempre/con le chose che chiudono in un giro/ sicuro come il giorno, e la memoria/ in sé le cresce, sole vive d'una/ vita che dispari soterra: insieme/ coi volti familiari che oggi sperde/ non più il sonno ma un'altra noia...

Eugenio Montale, «Vechi versi»

Uma cena de «Key Largo» de John Huston, 1948

«O sabor da cereja» - Abbas Kiarostami (1997)

Não é fácil para um homem
sepultar a sua sombra,
encontrar o melhor
que a terra nos dá:
um esconderijo.

A língua queimada
recusa as cerejas.
Nenhuma palavra
remove da boca
o gosto da poeira.

Circula sem vida,
por montes e restos,
o corpo tresmalhado.
Alguém há-de saber
para que serve um morto.

José Miguel Silva, Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005

La Vie en Rose



Sabrina, 1954
... Et je n'ai pas connu toutes Leurs voix, et je n'ai pas connu toutes/ les femmes, tous les hommes qui servaient dans la haute demeure/ de bois; mais pour longtemps encore j'ai mémoire/ des faces insonores, coleur de papaye et d'ennui, qui s'arrêtaient/ derrière nos chaises comme des astres morts...

Saint-John Perse, "Pour fêter une enfance"

sábado, 23 de janeiro de 2010

"Se te armas em esperto mijo-te o Herberto"



















Têm sido dias de terror estes, desde que o bichano começou a marcar desenfreadamente o meu casinhoto. Temo pela integridade dos meus livros.

«Carta de uma desconhecida» - Max Ophüls (1948)

1.
A vida dissoluta tem o seu encanto, desde
que a pessoa durma bem e tenha a sorte
de morrer cedo. Quando não, embaraça
ver um velho D. Juan a mendigar, de sacristia
em sacristia, um sucedâneo de amor.
A libertinagem, como qualquer opção moral,
deve ser levada às últimas consequências.
Pois de todos os pecados o mais inestético
é o arrependimento.

2.
Feliz é quem percebe a tempo aquilo que ama.
Esse não vai ao engano, não se mete onde não presta,
desconhece o desconsolo de uma carta fora de horas,
quando está já de roupão e de chinelos de quarto,
a cabeça uma colónia de fantasmas escarninhos.

Dar ouvidos, insistir, escolher a restrição do amor,
não vejo que outra coisa seja digna de um homem livre.

José Miguel Silva, Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005
Lidos esta semana ficaram Casi Cien Poemas e (quase no fim está) Movimentos no Escuro. Qualquer um dos dois vale a pena ler, naquilo que a minha opinião vale.

Uma música de Shigeru Umebayashi

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

«A harpa birmanesa» - Kon Ichikawa (1956)

Dez são os anjos
e longas as cordas.
Quem pode deter
a queda dos cegos
para trás dos olhos,
dormir com os mais,
menina Ismene?

Não sabe voltar
a pátria nenhuma
aquele que na guerra
ergueu uma pá
para juntar
a cinza dos vivos
ao lume dos mortos.

José Miguel Silva, Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005

«Amarcord» - Frederico Fellini (1973)

Uma épica de leves incidências, lâmpadas
que estoiram no basalto da memória,
onde tudo se confunde: acção e ficção,
calor e calafrio. A infância será isso,
uma «arte de mentir», a bem dizer.

Desse campo de farinha traduzimos
nós o pão que levamos hoje à boca,
sem fome nenhuma. Que saudades
do desejo incipiente, da sopa de venenos
na cozinha da avó, do tempo
em que navios de caruma
não tinham por destino a geena.

E já nada nos distingue, rapazes,
nem sequer o privilégio nos anima
desses nomes que rezamos, isolados:
Aldina, Volpina, Tomaide - a vertigem
do ardor, a volúpia da mulher
na gruta do tabaco. Fumos e misérias,
privações que nos rebocam vida fora.

José Miguel Silva, Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005

Uma cena de «Roman Holiday» de William Wyler, 1953

Alix


























O que eu me fartei de ler as aventuras de Alix e Enak.

El artificio

Un punto de partida, alguna idea
transformada en un ritmo, un decorado
abstracto vagamente o bien simbólico:
el jardín arrasado, la terraza
que el otoño recubre de hojas muertas.
Quizás una estación de tren, aunque mejor
un mar abandonado:

Gaviotas en la playa, pero quién
las ve, y adónde volarán.

Y la insistencia
en la imagen simbólica
de la playa invernal: un viento bronco,
y las olas llegando como garras
a la orilla.

O el tema del jardín:
un espacio de sombra con sonido
de caracola insomne. Un escenario
propicio a la elegía.

Unas palabras
convertidas en música, que basten
para que aquí se citen gaviotas,
y barcos pesarosos en la línea
del horizonte, y trenes
que cruzan las ciudades como torres
decapitadas.

Aquí
se cita un ángel ciego y un paisaje
y un reloj pensativo.

Y aquí tiene
su lugar la mañana de oro lánguido,
la tarde y su caída
hacia un mundo invisible, la noche
con toda su leyenda de pecado y de magia.

Siempre habrá sitio aquí para la luna,
para el triunfante sol, para esas nubes
del crepúsculo desangrado: metáfora
del tiempo que camina hacia su fin.

La música de un verso es un viaje
por la memoria.

Y suena
a instrumento sombrío.

De tal modo
que siempre sus palabras van heridas
de música de muerte:

Gaviotas en la playa...

O bien ese jardín:

Todo es de nieve y sombra,
todo glacial y oscuro.
El viento arrastra un verso
tras otro, en esta soledad. Arrastra
papeles y hojas secas
y un sombrero de copa
del que alguien extrae
mágicamente un verso
final:

Una luz abatida en esta playa.

Y hay un lugar en él para la niebla,
y un cauce para el mar,
y un buque que se aleja.

En cualquier verso tiene
su veneno el suicida,
su refugio el que huye
del hielo del olvido.

Puede
cada verso nombrar desde su engaño
el engaño que alienta en cada vida:
un lugar de ficción, un espejismo,
un decorado que
se desmorona, polvoriento, si se toca.

Pero es sorprendente comprobar
que las viejas palabras ya gastadas,
la cansina retórica, la música
silenciosa del verso, en ocasiones
nos hieren en lo hondo al recordarnos
que somos la memoria
del tiempo fugitivo,
ese tiempo que huye y que refugia
-como un niño asustado de lo oscuro-
detrás de unas palabras que no son
más que un simple ejercicio de escritura.

Felipe Benítez Reyes, Sombras Particulares, Visor Libros, 1992

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

15 Filmes

The Philadelphia Story, George Cukor, 1940
Casablanca
, Michael Curtiz, 1942
Notorious
, Alfred Hitchcock, 1946
It's a Wonderful Life, Frank Capra, 1946
Kvinnors Vantän, Ingmar Bergman, 1952
Senso, Luchino Visconti, 1954
Love in the Afternoon, Billy Wilder, 1957
Le Notti Bianche, Luchino Visconti, 1957
Smultromstället, Ingmar Bergman, 1957
Vertigo,
Alfred Hitchcock, 1958
Cat on a Hot Tin Roof, Richard Brooks, 1958
Estate Violenta, Valerio Zurlini, 1959
The Visit, Bernhard Wicki, 1964
Breakfast at Tiffany's, Blake Edwards, 1961
Who's Afraid of Virginia Wolf, Mike Nichols, 1966

Quinze mais-ou-menos-love-stories que acho que vale a pena ver, realizadas entre 1940 e 1960. Daqui a um ano talvez esta lista seja radicalmente diferente. Por agora demonstra algumas preferências e a extensão da minha ignorância cinematográfica.

Garcilaso, 1991

Mi alma os ha cortado a su medida,
dice ahora el poema,
con palabras que fueron escritas en un tiempo
de amores cortesanos.
Y en esta habitación del siglo XX,
muy a finales ya,
preparando la clase de mañana,
regresan las palabras sin rumor de caballos,
sin vestidos de corte,
sin palacios.
Junto a Bagdad herido por el fuego,
mi alma te ha cortado a su medida.

Todo cesa de pronto y te imagino
en la ciudad, tu coche, tus vaqueros,
la ley de tus edades,
y tengo miedo de quererte en falso,
porque no sé vivir sino en la apuesta,
abrasado por llamas que arden sin quemarnos
y que son realidad,
aunque los ojos miren la distancia
en los televisores.

A través de los siglos,
saltando por encima de todas las catástrofes,
por encima de títulos y fechas,
las palabras retornan al mundo de los seres vivos,
preguntan por su casa.

Ya sé que no es eterna la poesía,
pero sabe cambiar junto a nosotros,
aparecer vestida con vaqueros,
apoyarse en el hombre que se inventa un amor
y que sufre de amor
cuando está solo.

Luis García Montero, Casi Cien Poemas: Antologia 1980 - 1995, Hipérion, 1999

Libro Primero I

Yo sé
que el tierno amor escoge sus ciudades
y cada pasión toma un domicilio,
un modo diferente de andar por los pasillos
o de apagar las luces.

Y sé
que hay un portal dormido en cada labio,
un ascensor sin números,
una escalera llena de pequeños paréntesis.

Sé que cada ilusión
tiene formas distintas
de inventar corazones o pronunciar los nombres
al coger el teléfono.
Sé que cada esperanza
busca siempre un camino
para tapar su sombra desnuda con las sábanas
cuando va a despertarse.

Y sé
que hay una fecha, un día, detrás de cada calle,
un rencor deseable,
un arrepentimiento, a medias, en el cuerpo.

Yo sé
que el amor tiene letras diferentes
para escribir: me voy, para decir:
regreso de improviso. Cada tiempo de dudas
necesita un paisaje.

Luis García Montero, Casi Cien Poemas: Una Antologia 1980 - 1995, Hipérion, 1999

Tecnologia



Por muito que a tecnologia assuma preponderância sobre os modos de fazer cinema, para mim, a magia do cinema há-de sempre ter a ver com coisas como os olhos de Audrey Hepburn, rasos de água, enquanto o sacana do Gary Cooper entra num comboio.

La inmortalidade

Nunca he tenido dioses
y tampoco sentí la despiadada
voluntad de los héroes.
Durante mucho tiempo estuvo libre
la silla de mi juez
y no esperé juicio
en el que rendir cuentas de mis días.

Decidido a vivir, busqué la sombra
capaz de recogerme los veranos
y la hoguera dispuesta
a llevarse el invierno por delante.
Pasé noches de guardia y de silencio,
no tuve prisa,
dejé cruzar la rueda de los años.
Estaba convencido
de que existir no tiene trascendencia
porque la luz es siempre fugitiva
sobre la oscuridad
un resplandor en medio del vacío.

Y de pronto en el bosque se encendieron los árboles
de las miradas insistentes,
el mar tuvo labios de arena
igual que las palabras dichas en un rincón,
el viento abrió sus manos
y los hoteles sus habitaciones.

Parecía la tierra más desnuda
porque la noche fue
como el vacío
un resplandor oscuro en medio de la luz.

Entonces comprendí que la inmortalidad
puede cobrarse por adelantado.
Una inmortalidad que no reside
en plazas con estatua
en nubes religiosas
o en la plastificada vanidad literaria,
llena de halagos homicidas
y murmullos de cóctel.

Es otra mi razón. Que no me lea
quien no haya nunca visto conmoverse la tierra
en medio de un abrazo.
La copa de cristal
que pusiste al revés sobre la mesa
guarda un tiempo de oro detenido.
Me basta con la vida para justificarme.
Y cuando me convoquen a declarar mis actos
aunque sólo me escuche una silla vacía
será firme mi voz.

No por lo que la muerte me prometa
sino por todo aquello que no podrá quitarme.

Luis García Montero, Casi Cien Poemas: Antología 1980 - 1995, Hiperíon, 1999

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

«O Intendente Sanchô» - Kenzo Mizoguchi (1954)

Um abrigo de restolho, breve chama,
é tudo o que podemos.
Antes que da noite o lobo venha
devorar o que nos resta.

«Sê severo, Tsushiô, contigo próprio,
e brando com os outros.»

Um pai é uma medida,
não oferece protecção;
a mãe uma raiz, leve prece,
muito longe;
sob as águas, a irmã,
um galho que se quebra.

De tão tardio mundo
pode um homem exilar-se?

José Miguel Silva, Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005

Uma fala de «Love in the Afternoon» de Billy Wilder, 1957

























[Ariane Chavasse] They're very odd people, you know. When they're young, they have their teeth straightened, their tonsils taken out and gallons of vitamins pumped into them. Something happens to their insides! They become immunized, mechanized, air-conditioned and hydromatic. I'm not even sure whether he has a heart.
[Michel] What is he? A creature from outer space?
[Ariane Chavasse] No. He's an American.

Das relações imperiais

De acordo com Suetónio, Tibério dizia de Calígula que este era não só a sua perdição mas a perdição de todos, e que estava a criar uma «hidra para o povo romano» e um «Faetonte para o universo».
Uma coisa que sempre me fez uma confusão desgraçada é que, se Tibério tinha semelhante estima por Calígula, por que não just... put him out of the way? Não se sabe. É daquelas coisas na história do império romano que nunca saberemos, está na mesma linha de perguntas como: porque é que Aníbal não marchou sobre Roma no exacto instante em que venceu Canas?
Adiante. Sabemos apenas que Tibério, para um gajo que coroava o filho adoptivo de semelhantes epítetos, fez uma coisa muito esquizofrénica. Nomeou o seu neto natural, Gémelo, e Calígula, um adoptado, herdeiros em partes iguais dos seus próprios bens e, ao mesmo tempo, herdeiros dos bens um do outro, o que gerava um impasse na sucessão ao império. Se apenas um herdasse o que era de Tibério, ou se um herdasse uma parte de leão, toda a gente saberia que era esse que Tibério pretendia para seu sucessor. Mas não foi isso que sucedeu. Tibério morreu sem se decidir.
À morte de Tibério, Calígula foi ao senado, fez uma fita desgraçada, disse que gostava do irmão como um filho, mas que o moço ainda era muito novo (como se pode ver, uma diferença brutal de idades, um com 18 outro com 25) e que pretendia adoptá-lo, ficando ele a reger o império, embora os amigos pessoais do imperador argumentassem que devia haver uma divisão efectiva de poderes.
Isto dá-me vontade de especular uma ou duas coisas, nomeadamente saber se Tibério poderia estar a intuir, ao gerar este impasse, um sistema parecido com a tetrarquia, ou seja terminar com a concentração de poderes numa só figura, separando os poderes talvez entre um Augusto e um César. Mas não é possível de facto saber. O que sabemos é que Calígula, very smoothly e um pouco mais tarde, forçou Gémelo a cometer suicídio.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

«You are a foreigner of some sort.»

À míngua de uma ideia
de futuro, só o medo
te compelia a mudar.
E além dos livros difíceis
que te davam as horas
mais duras, sofrias os danos
do hábito e uma assídua
preocupação com a morte
no escuro antes de dormir.
Ao corpo do mundo
só a conhecias com a parte
mais desacompanhada
de ti próprio - um coração
com defeito, peça de dúbia
oficina, que confundia
o amor e tomava por alegria
um perdido laranjal junto à linha
do comboio, com nuvens roxas
ao largo e os teus amigos todos
antes do inverno e do necessário
inferno reservado a cada um.

Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira, Averno, 2009


Contos que são poemas longos

And the image of southern Jews flares up in my memory - jovial, potbellied, sparkling like cheap wine. There is no comparasion between them and the bitter aloofness of these long bony backs, these tragic yellow beards. In their fervent features, carved by torture, there is no fat or warm pulse of blood. The movements of the Galician and the Volhynian Jew are abrupt, brusque, and offensive to good taste, but the power of their griff is filled with dark grandeur, and their secret contempt for the Polish masters is boundless. Looking at them I understood the fiery history of these faraway interlands, the stories of Talmudists who leased out taverns, of rabbis who dabbled in moneylending, of girls who were raped by polish mercenaries and for whom polish magnates shot themselves.

Isaac Babel, Red Cavalry, Nathalie Babel (ed.), Peter Constantine (trad.), Norton, 2003


«Hollywood Ending» de Woody Allen, 2002





















Uma cena com uma luz mesmo bonita reflectida nos arranha-céus de Nova Iorque quase no final de Hollywood Ending, quando o realizador cego torna a recuperar a visão.
"... And you shoot because you are the Revolution. But revolution is happiness. And happiness does not like orphans in its house. A good man does good deeds. The Revolution is the good deed done by good men. But good men do not kill. Hence the Revolution is done by bad men. But the Poles are also bad men. Who is going to tell Gedali which is the revolution and which the counterrevolution? I have studied the Talmud. I love the commentaries of Rashi and the books of Maimonides. And there is also other people in Zhitomir who understand. And so all of us learned men fall to the floor and shout with a single voice, 'Woe unto us, where is the sweet revolution?'"

Isaac Babel, Red Cavalry, Nathalie Babel (ed.), Peter Constantine (trad.), Norton, 2003

«He loved beauty that looked kind of destroyed.»

Gostava dessa espécie de beleza
que podemos surpreender a cada passo,
desvelada pelo acaso numa esquina
de arrabalde; a beleza de uma casa devoluta
que foi toda a infância de alguém,
com visitas ao domingo e tardes no quintal
depois da escola; a beleza crepuscular
de alguns rostos num retrato de família
a preto e branco, ou a de certos hotéis
que conheceram há muito os seus dias de fulgor
e foram perdendo estrelas; a beleza condenada
que nos toma de repente, como um verso
ou o desejo, como um copo que se parte
e dispersa no soalho a frágil luz de um instante.
Gostava de tudo isso que o deixava muito a sós
consigo mesmo, essa espécie de beleza
arruinada
onde a vida encontra o espelho mais fiel.

Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira, Averno, 2009

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A Tentação do Poema Longo: a tradição da poesia oral e tradicional e a sua memória na poesia pessoana.

Eis o título da conferência que Manuel Gusmão vai dar amanhã na FLUL, no Anfiteatro III a partir das 16h00. Mais informação aqui.

«Oh, I continue.»

Sim, depressa muda
a noite. O ano das cerejas

e das cartas já lá vai.
Mas vejo ainda e sempre

o desenho que fizeste
para conjurar a sorte

na toalha de papel -
são duas estrelas mortas

tatuadas na retina,
tinta preta que não sai.

Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira, Averno, 2009

«Do coração da noite vinham apelos e silêncios»

Para o João Menau


As cidades doem, estão dentro de nós
mantidas por laços de fumo e desejo,
têm muros úteis e portas escondidas
que dão para a noite, como certos livros,
e há amores que vivem a horas tardias

e outros que se cortam no fio da trama,
queimam paus de incenso para abrir
caminhos, remover obstáculos, há curvas
e arcos, ecos desolados, quartos de ninguém.
As cidades cansam, estão nos nossos

dias, têm mil janelas de azul virtual
que nunca sossegam e nunca terminam
e há corpos que ensinam a temer a morte,
sombras que circulam nas redes do escuro
e homens que ferem para não chorar.

Rui Pires Cabral, Oráculos de Cabeceira, Averno, 2009

The Composer

All the others translate: the painter sketches
a visible world to love or reject;
Rummaging into his living, the poet fetches
The images out that hurt and connect,

From Life to Art by paintstaking adaption,
Relying on us to cover the rift;
Only your notes are pure contraption,
Only your song is absolute gift.

Pour out your presence, a delight cascading
The falls of the knee and the weirs of the spine,
Our climate of silence and doubt invading;

You alone, alone, imaginary song,
Are unable to say an existence is wrong
And pour out forgiveness like a wine.

W. H. Auden
, O Massacre dos Inocentes: Uma Antologia, José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 1994

domingo, 17 de janeiro de 2010

Lido está Oráculos de Cabeceira. Livro muito bom, for my standards, of course, que recomendo vivamente.

Musée des Beaux Arts




















Ícaro de Brueghel

About suffering they were never wrong,
The Old Masters; how well, they understood
Its human position; how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:

They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.

In Breughel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
had somewhere to get to and sailed calmly on.

W. H. Auden, O Massacre dos Inocentes: Uma Antologia, José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 1994

Há com cada uma

«Se for um casamento, com estatuto de casamento, obviamente não se pode impedir uma adopção.»

Até aqui vamos muito bem, mas imediatamente a seguir:

«Uma criança precisa de ter uma mãe. Se for uma mulher só ou duas a viverem juntas não vejo qualquer impedimento. Agora para homens não faz sentido.»

(Declarações de D. Duarte de Bragança tiradas daqui.)

Portanto:
1. Se há casamento não deve haver restrições quanto à adopção.
.....1.1. ... à excepção de casais sexuais masculinos.

Que é como quem diz: «Portugal deve ser uma democracia/ governada por um rei despótico.»

Almost Blue, Chet Baker

In Memory of W.B. Yeats

III

Earth, receive an honoured guest:
William Yeats is laid to rest.
Let the Irish vessel lie
Emptied of its poetry.

Time that is intolerant
Of the brave and the innocent,
And indifferent in a week
To a beautiful physique,

Worships language and forgives
Everyone by whom it lives;
Pardons cowardice, conceit,
Lays its honours at their feet.

Time that with this strange excuse
Pardoned Kipling and his views,
And will pardon Paul Claudel,
Pardons him for writing well.

In the nightmare of the dark
All the dogs of Europe bark,
And the living nations wait,
Each sequestered in its hate;

Intellectual disgrace
Stares from every human face,
And the seas of pity lie
Locked and frozen in each eye.

Follow, poet, follow right
To the bottom of the night,
With your unconstraining voice
Still persuade us to rejoice.

With the farming of a verse
Make a vineyard of the curse,
Sing of human unsuccess
In a rapture of distress.

In the deserts of the heart
Let the healing fountains start,
In the prison of his days
Teach the free man how to praise.

W. H. Auden, O Massacre dos Inocentes: Uma Antologia, José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 1994

In Memory of W.B. Yeats

II

You were silly like us; your gift survived it all:
The parish of rich women, physical decay,
Yourself. Mad Ireland hurt you into poetry.
Now Ireland has her madness and her weather still,
For poetry makes nothing happen: it survives
In the valley of its making where executives
Would never want to tamper, flows on south
From ranches of isolation and the busy griefs,
Raw towns that we believe and die in; it survives,
A way of happening, a mouth.

W. H. Auden, O Massacre dos Inocentes: Uma Antologia, José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 1994

sábado, 16 de janeiro de 2010

Un Prophète
























Não fiques aí especado. Vai ver. É brutal.

In Memory of W.B. Yeats

I

He disappeared in the dead of winter:
The brooks were frozen, the airports almost deserted,
And snow disfigured the public statues;
The mercury sank in the mouth of the dying day.
What instruments we have agree
The day of his death was a dark cold day.

Far from his illness
The wolves ran on through the evergreen forests,
The peasant river was untempted by the fashionable quays;
By mourning tongues
The death of the poet was kept from his poems.

But for him it was his last afternoon as himself,
An afternoon of nurses and rumours;
The provinces of his body revolted,
The squares of his mind were empty,
Silence invaded the suburbs,
The current of his feeling failed; he became his admirers.

Now he is scattered among a hundred cities
And wholly given over to unfamiliar affections,
To find his happiness in another kind of wood
And be punished under a foreign code of conscience.
The words of a dead man
Are modified in the guts of the living.

But in the importance and noise of to-morrow
When the brokers are roaring like beasts on the floor of the Bourse,
And the poor have the sufferings to which they are fairly accustomed,
And each in the cell of himself is almost convinced of his freedom,
A few thousand will think of this day
As one thinks of a day when one did something slightly unusual.

What instruments we have agree
The day of his death was a dark cold day.


W. H. Auden, O Massacre dos Inocentes: Uma Antologia, José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 1994

Chet Baker segundo William Claxton

Actualização em Ítaca.
Li ontem este O Massacre dos Inocentes. Gostei de tudo, mas muito do último texto.
For without a cement of blood (it must be human, it must be innocent) no secular wall will safely stand.

W. H. Auden, O Massacre dos Inocentes: Uma Antologia, José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 1994

Um final que tão depressa não se esqueça

He held out a tattered photograph. In it was Timofey Kurdyukov, a wide shouldered police constable in a policeman's cap, his beard neatly combed. He was stiff, with wide cheekbones and sparkling, colorless, vacant eyes. Next to him, in a bamboo chair, sat a tiny peasant woman in a loose blouse, with small, bright, timid features. And against this provincial photographer's pitiful backdrop, with its flowers and doves, towered two boys, amazingly big, blunt, broad-faced, goggle-eyed, and frozen as if standing at attention: the Kurdyukov Brothers, Fyodor and Semyon.

Isaac Babel, Red Cavalry, Nathalie Babel (ed.), Peter Constantine (trad.), Norton, 2003


sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Django Reinhardt/ Fotografias de William Gottlieb II

Curiosidade


(Recém-editado pela Bruáa em Portugal.)

Irene

Así amanece el día
Claudio Rodríguez

¿Conoces ya la tinta meditada
de la primera luz?
Mira el esfuerzo
que en la copa más alta del bosque más oscuro
raya un momento, avisa y mientras cae
forma la claridad.
Así comienza el día.
Así también, contigo,
cobran todas las cosas
un impreciso afán por empezar de nuevo,
por ser tu compañía
cuando el tiempo aparezca.

Y no es el mecanismo
oxidado de un tren lo que se mueve,
ni las maderas de la barca
están secas aún. No en todas las historias
el tiempo necesita la nostalgia.

Pero tiene la luz recuerdos que son nuestros.
Van a bajar los dioses de sus libros,
alguien descubrirá que el mundo es navegable,
habrá días y noches, y en la luna
de lo ya sucedido
respirará la fábula blanca del calendario.

¿Qué haremos de nosotros
ahora que los espejos todavía
no tienen una sombra que llevarse a sus láminas
y los recuerdos nacen aprendiendo
a contar hasta diez?
¿Qué podemos hacer con lo que nos han dado?

Como una insinuación, como la piedra
interroga al estanque,
cae la luz en el sueño de la casa.

Y la distancia,
esa divinidad que medita en el agua
de los puertos,
vuelve al pasado, busca entre sus mitos
un ángel sin heridas,
una nueva metáfora,
algo que no es tu nombre,
pero que yo pronuncio desde el fondo
abierto de tus ojos.

Luis García Montero, aqui.

A Cadeira de Glenn Gould

Billie Holiday/ Fotografias de William Gottlieb - I

a angústia fora da máscara
o hábito de descer aos campos com a tarde
a sageza de falar muito
de durar muito pouco tempo
certa forma de respirar sua e fora da chuva
uma certa inclinação para a queda
dele o cinzel que lavra o mármore
como o arame que percorre as mãos
na transposição de certas sebes e como
o arado vai cinzelando a terra
ou o que disto permanecesse mais do que um limite
a breve estação do rosto à luz de uma candeia acesa

ou este que primeiro desce do comboio
e te devolve à angústia de algumas imagens
ao hábito de olhar os primeiros frutos
da sacada da casa e a sua sombra
descendo aos campos com o silêncio da tarde
a sageza de falar muito pouco fora do tempo
em que não respiras
e permanecer antes no modo como se corre
para certos abrigos com o passo incerto de quem escapa à chuva

ao fim do dia isto
uma certa inclinação para a mágoa
martelo escopro cinzel
a mão sobre o arado que encerra o trabalho
a cada dia arame farpado
o que permanecesse sempre labor mais árduo
do que a passagem fugaz de cada estação
força que chegasse para que a mão contivesse a pedra

encontrar a cada dia o que servisse para iluminar o rosto na mais difusa
das luzes e fizesse a teu lado o caminho desde as margens do rio
e de súbito diante de ti se detivesse
e fosse como a força de um golpe certeiro contra o peito

Tatiana Faia

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Collectible Saul Bellow.

Yesterdays, Billie Holiday

Canción amarga

En la cara lleva
tres años perdidos
y el frío de las seis de la mañana.

Van a partirte el corazón.
De pronto
la luz apagada,
los pasillos turbios,
la puerta que clava su ruido en la espalda.

Van a partirle el corazón.
Y arrastra
una cadena oscura
de pasiones heladas,
ese frío que cabe solamente
detrás de una palabra.

Y yo la veo caminar,
despacio,
perderse en lo que anda,
fugitiva tristeza que va y viene
de la sombra a la puerta de mi casa.

La luz artificial deja en la calle
el temblor silencioso
de tres barcas ancladas.

cuando ella cruza por mi lado siento
como un golpe de remos
y un murmullo de agua.

Luis García Montero, daqui.
A verdadeira ternura
não se confunde com mais nada.
E é silêncio.
Em vão, solícito, me cobres os ombros com peles.

E em vão, humilde, me falas de primeiro amor.
Ah, como eu conheço os teus olhares ardentes,
...............incessantes.

Anna Akhmátova, in Anna Akhmátova e Marina Tsvétaieva, tradução de António Mega Ferreira, E Cantou como Canta a Tempestade, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007

Expectativas altas

Cabo Sounion*

Al pasar de los años,
¿qué sentiré leyendo estos poemas
de amor que ahora te escribo?
Me lo pregunto porque está desnuda
la historia de mi vida frente a mí,
en este amanecer de intimidad,
cuando la luz es inmediata y roja
y yo soy el que soy
y las palabras
conservan el calor del cuerpo que las dice.

Serán memoria y piel de mi presente
o sólo humillación, herida intacta.
Pero al correr del tiempo,
cuando dolor y dicha se agoten con nosotros,
quisiera que estos versos derrotados
tuviesen la emoción
y la tranquilidad de las ruinas clásicas.
Que la palabra siempre, sumergida en la hierba,
despunte con el cuerpo medio roto,
que el amor, como un friso desgastado,
conserve dignidad contra el azul del cielo
y que en el mármol frío de una pasión antigua
los viajeros románticos afirmen
el homenaje de su nombre,
al comprender la suerte tan frágil de vivir,
los ojos que acertaron a cruzarse
en la infinita soledad del tiempo.

Luis García Montero, gamado de aqui.

*Súnio é a zona mais meridional da Ática e nela fica situado o promontório com os famosos templos de Atena e Poseidon.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Adam Goldsworthy, o autor de «César, a Vida de um Colosso»*

"Eu tive a sorte de aprender latim ainda no liceu, e ensinaram-me a dar importância à herança clássica", disse-nos o historiador. Porém, sabe que não é isso que acontece mesmo onde devia acontecer. Há umas décadas, nas academias militares ainda se liam os Comentários sobre a Guerra na Gália, o magnífico relato que o próprio Júlio César escreveu sobre os dez anos de campanhas de conquista, pacificação e ocupação, mas hoje a obra desapareceu dos currículos. O que é pena: "Era importante regressarmos à história clássica porque ela impregna toda a nossa cultura e instituições. As nossas grandes referências culturais, mesmo as mais recentes, ainda são figuras que conheciam a cultura clássica muito bem, mas isso está a acontecer cada vez menos. Em contrapartida, há muito para aprender, até porque há muitos paralelos com a vida política moderna", considera Goldsworthy. Ler mais aqui.

* Que já agora é o único título decente que se podia dar a uma biografia de César.

Leda and The Swan, W. B. Yeats (1928)


A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed
By the dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breast.

How can those terrified vague fingers push
The feathered glory from her loosening thighs?
And how can body, laid in that white rush,
But feel the strange heart beating where it lies?

A shudder in the loins engenders there
The broken wall, the burning roof and tower
And Agamemnon dead.
Being so caught up,

So mastered by the brute blood of the air
Did she put on his knowledge with his power
Before the indifferent beak could let her drop?

Os ouvidos de Deus


Pe. António Vieira

Sermão das Exéquias do Augustíssimo Rei D. João IV o Animoso, o Invicto Pai da Pátria de Imortal Memória
«Na Música, a que S[ua] Majestade era tão conhecidamente inclinado, foi cousa muito advertida, e reparada, que toda era ordenada ao culto Divino. Até hoje não houve no Mundo livraria de Música, como a que S[ua] Majestade tinha ajuntado de todo ele, e de todos os famosos Mestres de todas as idades. Mas que continha toda esta livraria? Missas, Vésperas, Psalmos, Poesias, e Versos Divinos: enfim, Música Eclesiástica. A música de David lançava os Demónios fora dos corpos: há outra música, que mete os Demónios na alma. Toda a Música de S[ua] Majestade era verdadeiramente Música de David, nem podia ouvir outra. Tendo tantos Músicos, e gastando tanto com eles, não tinha S[ua] Majestade Músicos de Câmara, senão só de Capela. Quando queria ouvir Música, não mandava cantar um tono, que é o gosto ordinário dos Príncipes, e dos que o não são; mandava cantar um Psalmo, ou um Magnificat, ou outra cousa Sagrada, com admiração de todos. Muitos dos Psalmos de David têm por título: Ipsi David: Para o mesmo David. Lede estes Psalmos, e achareis que todos continham louvores de Deus: de sorte que a Música, que era para David, era juntamente para Deus; e a Música, que era para Deus, era juntamente para David. Cá os Reis do Mundo têm Música de Câmara, e Músicos de Capela: Música para si, e Música para Deus. David, e El Rei D. João não eram assim: os seus ouvidos eram como o seu coração, feitos pela medida dos ouvidos de Deus; e só o que nos ouvidos de Deus fazia ressonância, tinha também harmonia nos seus ouvidos.»

in João Francisco Marques (ed.), Sermões do Padre António Vieira. Morte e Sepultura. Oratória Fúnebre. Figueirinhas, Porto, 2009

A ilustração é retirada da Relaçam da morte e enterro ... delRey D. João IV


Os fins com que a mocidade os inquieta


«Quanto às musicas do tempo tambem he grande o detrimento, que nellas padece a Castidade. Porque assim como o canto grave, e devoto ajuda a levantar o espirito gerando nelle bons pensamentos, e saudades da Patria Celestial; e por isso se usa nas Igrejas entre os Divinos Officios: assim as sarabandas, e modos muy festivos, e picados, o distrahem, affeminão, e corrompem; e por isso se usa nas comedias, nas ceas nupciaes, e nas musicas, e discantes dos que de noite fazem pé de janella para os fins, com que a mocidade os inquieta.»
Pe. Manuel Bernardes (1644-1710)
Armas da Castidade
in A. do Prado Coelho (ed.), Clássicos Portugueses. Trechos Escolhidos. Manuel Bernardes II
Clássica Editora, Lisboa 1943

Música

Para Dmitri Dmitrievich Schostakovich

O vestígio de um milagre arde dentro dela,
e só o seu olhar, múltiplo e brilhante,
me dirige a palavra, fala-me de perto,
quando outros receiam aproximar-se.

Quando o último dos amigos despediu de mim o seu olhar,
ela veio deitar-se no túmulo a meu lado
e cantou como canta a tempestade,
como se todas as flores começassem a falar.

Anna Akhmátova, in Anna Akhmátova e Marina Tsvétaieva, tradução de António Mega Ferreira, E Cantou como Canta a Tempestade, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007. A tradução deste poema é de Filipe Pinto-Ribeiro.

The Second Coming

Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: a waste of desert sand;
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Wind shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?

W. B. Yeats, Michael Robarts and the Dancer, 1920

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

No second Troy

Why should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great,
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done being what she is?
Was there another Troy for her to burn?

W. B. Yeats, Responsabilities and Other Poems, 1916

Uma cena de «Sweet and Lowdown» de Woody Allen, 1999

O céu corre para ti, o mar caminha,
longe, atrás de ti, a água passa,
altos, imóveis, pinheiros entre escarpas
sobre o azul que se estende à marinha...
como são escuros os pinheiros! Metem medo.
E como brinca o sol sobre o estrondo
do mar que traz a água e te respira!
Gostava de nadar e, em vez disso, escura,
fito uma nuvem que vem do mar ao fundo.
Então espero por ti que sobre a margem
espelhas o ar que vem para mim do mundo.

Franco Loi, Memória, António Osório (coord.), Quetzal Editores, 1993

IV. Allegretto

Não esperes que te ajude o Cavaleiro
Andante
ou - menos ainda - a música.
Cresceste demasiado, o teu corpo
não cabe no teu corpo e o amor
(ah, o amor) ajuda mas não salva.
- Vem comigo partir estes pinhões,
sob o esboroado cor-de-rosa das paredes.
Os cavalos, acredita, não te farão mal.

Depois das laranjeiras havia um tanque,
depois de um tanque um jardim. Mas,
de pouco te serve dizê-lo, agora que tratas
por tu a mais íntima distância do que foste.

Manuel de Freitas, Beau Séjour, Assírio & Alvim, 2003

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Li este livro ontem: Um mover de Mão. Comecei o Massacre dos Inocentes e não o vou acabar hoje. Há pouco, por «questões profissionais» voltei a ler a «Ode Marítima». Sempre que tenho de escrever alguma coisa sobre Pessoa é desse poema que me lembro. Acho que na primeira metade do séc. XX pouca poesia se escreveu em Portugal que chegue aos calcanhares deste poema.

Búzio

sei que nunca viste o oceano
que nunca olhaste a onde sobre a onda,
que nunca fizeste castelos para o mar ser forte.

mas sei que já viste o coração das coisas,
que já tocaste a ferida dos nossos braços,
que já escreveste para sempre o nome da terra.

por isso te digo que vou levar-te ao mar
na concha das minhas mãos, azulíssimo,
para que nele descubras o meu nome
entre os seixos os búzios os rostos que já tive.

Vasco Gato, Um Mover de Mão, Assírio & Alvim, 2000

Lagar

As mães, e até as que não eram mães,
achavam salutar que mergulhasses no mosto,
na promessa penas desse vinho tinto
que ao enrijecer os músculos
despertava a alma para infâmias e paixões.

Que diriam agora, se o pudessem dizer,
essas mães? Deixa, qualquer abismo serve:
perdeste a infância e não encontraste o mundo.

Manuel de Freitas, Beau Séjour, Assírio & Alvim, 2003

[Citação]

And we are put on earth a little space
That we may learn to bear the beams of love

William Blake, Songs of Innocence, "The Little Black Boy"

domingo, 10 de janeiro de 2010

She raises her thin legs and round belly from the floor and pulls the blanket of the sleeping man. An old man is lying there on his back, dead. His gullet has been ripped out, his face hacked in two, and dark blood is clinging to his beard like a clump of lead.
"Pan", the Jewess says, shaking out the eiderdown, "the Poles were hacking him to death and he kept begging them, 'kill me in the backyard so my daughter won't see me die!' But they wouldn't inconvenience themselves. He died in this room thinking of me... And now I want you to tell me," the woman suddenly said with terrible force, "I want you to tell me where one could find another father like my father in this world."

Isaac Babel, "Crossing the River Zbrucz", Red Cavalry, Nathalie Babel (ed.), Peter Constantine (trad.), Norton, 2003




















Este Isaac Babel é um escritor com H grande. Podia dizer que é porque ele conta histórias com o exacto número de palavras necessárias para escrever o que pretende, não há uma única palavra a mais ou menos neste Red Cavalry, mas dizer que ele é um contador de histórias é reduzi-lo. Escritores como Isaac Babel são o motivo pelo qual os livros começaram a existir e pelo qual continuarão a existir sempre.

Cleofonte

Para mais, quando os Lacedemónios mostraram intenções de evacuar Deceleia e firmar a paz no ponto em que ambos se encontravam, alguns apressaram-se a mostrar o seu apoio. A maioria, porém, não quis atendê-los, deixando-se levar por Cleofonte, que impediu que se firmasse a paz, ao apresentar-se na assembleia, bêbado e de couraça revestida, afirmando a sua completa oposição, a menos que os Lacedemónios se retirassem de todas as cidades ocupadas.

Aristóteles, Constituição dos Atenienses, Delfim Leão (trad.), Fundação Calouste Gulbenkian, 2003

Lady Be Good


Cena do Alice in Wonderland de Dallas Bower (1949).
Infelizmente já nos demos conta disso.

sábado, 9 de janeiro de 2010






















Lidos nos últimos dias ficaram: Profecia (que me pareceu, e posso estar a ser injusta, isto é sempre subjectivo, o que se chama poesia competente mas em beco sem saída - ou seja os poemas são bonitinhos mas lê-se e depois diz-se: and so what?), Beau Séjour (em que gostei desalmadamente de alguns poemas e embirrei furiosamente com outros) e começado um livro que me parece maravilhoso maravilhoso maravilhoso maravilhoso (do género de me pôr os olhinhos a brilhar tipo o gato das botas no Shrek): Red Cavalry, recomendação do irrepreensível leitor que é o Jean Pierre. O Ulisses está na página 542 and counting.

Disposições em relação a este Diário de Leitura: deixar aqui registados todos os livros que for lendo (até que a morte me separe dos livros ou enquanto este blogue durar), a minha opinião sincera relativamente aos ditos (sempre que para isso estiver com pachorra) e criar um registo que me deixe com margem de progressão, para, se daqui a uns anos tornar a ler um livro já lido, discordar completamente de mim própria ou seguir, menos esquizofrenicamente, em plena harmonia diacrónica de ideias. O propósito desta etiqueta não é, no entanto, fazer crítica. Se alguém se quiser manifestar em relação a este Diário, a caixa de comentários está à disposição. E posto isto (que é um pouco parvo), procedamus in pacem.
Olhei o homem e dentro estava ainda
qualquer coisa que da sombra me espreitava.
Era um espelho, como um céu de noite
em que as estrelas são tantas e pesam sobre ti,
e te espiam e, de facto, não te vêem,
ficam no escuro como pedras sem lembranças,
mas estão lá, qual memória da vida,
e tu és um sopro do teu ser longínquo...
Procurei no espelho, e quase lá no fundo
estava outro qualquer que me buscava,
alguém que sofria a sua própria dor,
e eu já não era nada, era só a história
que não se via já atrás do espelho.

Franco Loi, Memória, António Osório (coord.), Quetzal Editores, 1993