segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Nos próximos dias eu serei um homem muito feliz

que o homem rema cortando a água
e se recorda da expressão da tua cara
o impulso dos braços é o último gesto honesto
e transporta consigo o salto cortado entre degraus
a multidão o encontro na escada
o susto entrecortado da mulher
que deixa resvalar a mão no ombro do amante

perto
longe

de repente repetida nas mãos
a luz dos meses mais cruéis

A vida desejável

- As pessoas não sabem como as canções de amor podem ser perigosas - avisou, às ocultas, o áureo ovo de Russel. - Os movimentos que as revoluções produzem no mundo nascem dos sonhos e visões no coração de um camponês, numa colina. Para eles a terra não é terreno explorável mas a mãe viva. O ar rarefeito da academia e da arena produz o romance de seis xelins, a canção de music-hall. A França produz a mais bela flor de corrupção em Mallarmé mas a vida desejável só se revela aos pobres de coração, a vida dos feaces de Homero.

James Joyce, Ulisses, João Palma-Ferreira (trad.), Livros do Brasil, 2000

Em que língua gritas tu, meu pesadelo

Em que língua gritas tu, meu pesadelo,
meu fantasma? Cem vezes seguidas
Nina Simone a cantar Sinnerman.
Don't you see I need you, rock?
E querias que cantasse contigo.

Sempre cantámos canções e atingimos
depois a plenitude, o silêncio: não cantamos,
não nos tocamos, não dizemos nada
que não seja útil. A tua última frase
com sintaxe (enrolaste a palavra dentro
de uma palmeira azul) pareceu-me
feliz, dentro do género surreal-charrado.

Eu podia mandar desenhá-la a desenhadores
desempregados, pôr moldura e tudo,
em vez destas letras que, de cada vez
que se formam intuitivamente no papel,
logo lançam reflexos nos meus joelhos.

Um assobio, uma pequena linha de seiva
e os dois com falta de paciência, leva-me,
poesia, na escada do desacerto e faz
de mim um lavador de pés, um menino
moldavo a limpar vidros nos semáforos.

Ao olhares bem de frente uma cara
de apatia, podias voltar à velha história
do espelho, e dizer isso em verso coxo,
mas não era nada disso, a apatia
eras tu, não outra pessoa, não eu, não
o meu espelho. Ah, eu já não te digo
nada, já não te canto nada como dantes.

Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005

Simone de Beauvoir



































Fotografada por Henri Cartier-Bresson.

(Revelar Ideias?)

A arte tem de nos revelar ideias, essências espirituais sem forma. A suprema questão sobre uma obra de arte é saber qual a profundidade de vida de onde emerge. A pintura de Gustave Moureau é a pintura de ideias. A mais profunda poesia de Shelley, as palavras de Hamlet põem os nossos espíritos em contacto com a sabedoria eterna, o mundo de ideias de Platão. Tudo é resto é especulação de estudantes para estudantes.

James Joyce, Ulisses, João Palma-Ferreira (trad.), Livros do Brasil, 2000

«Rashomon» de Akira Kurosawa, 1950


Com uma banda sonora excelente, com uma interpretação extraordinária de Toshirô Mifune, um filme fantástico, tão artesanal na forma como foi filmado que mais parece uma peça de teatro.

domingo, 29 de novembro de 2009

...
Sustento, erguendo as mãos, todos os astros.
...

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

Orlando Tinha Razão

No canto IX de Orlando Furioso, Orlando vence o rei da Frísia, que possuía uma arma de fogo, um arcabuz. É a arma com que este combate e Orlando tem muitas dificuldades em derrotá-lo. Assim que vence o rei, Orlando apressa-se a atirar ao mar a arma com que este se batia, exclamando que uma arma de fogo destrói qualquer hipótese de valentia.
Em Sete Samurais, de Akira Kurosawa, um dos samurais é um guerreiro perfeito, de tal modo que o mais experiente e líder dos sete, ao vê-lo, lhe tece todos os elogios e compreende imediatamente que este se trata de um homem unicamente interessado na arte da guerra. Mais tarde, em combate, a este samurai (salvo o erro Kyuzo) é confiada a tarefa de se infiltrar no campo do inimigo e trazer consigo uma das espingardas que este possuía. Kyuzo desaparece e tarda em voltar. Todos começam a pensar que ele está morto. Até que ele regressa trazendo a espingarda e dizendo que matara um dos inimigos ao executar a tarefa. Kyuzo será morto numa das sequências finais do filme, não num combate corpo a corpo, mas à traição, com um tiro de espingarda.
Orlando tinha razão.

Sem Outro Intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

sábado, 28 de novembro de 2009

«Crows» de Akira Kurosawa, 1990


Esta é uma das curtas-metragens que compõem o filme Dreams de Akira Kurosawa. (Martin Scorsese é Van Gogh.)

Cheguei a ter medo de te perder

Cheguei a ter medo de te perder,
tu não chegaste sequer a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
ouve-se nas outras palavras que trocamos.

Miserável mundo nosso e alheio,
igual ao que todos disseram da sua época,
e pior, porque este vivemos nós
e conhecemos nós, cada um conforme pode.

Já morreram os ídolos todos da infância
e os da adolescência vão a caminho,
sobrevivente é o teu olhar cego
(hoje já só há um dos Righteous Brothers).

Na feira de velharias uma caixa
para tabaco com uma rosa verde.
Tem o preço ainda em escudos, uma falha
num dos cantos, uma pequena cruz de cal.

Permaneces aí, à lareira, lendo livros vivos
e o seu turbilhão de palavras profundas.
Nunca mais chega o medo de nos perdermos
eco um do outro em ricochete de silêncios.

Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005

(Noutro dia um amigo apanhou-me a ler este livro e perguntou-me se me estava a divorciar.)

Este é...


...um vídeo muito irónico.

2.

I wish I were dead, my foe,
My friend, I wish I were dead,
With a stone at my tired feet
And a stone at my tired head.

In the pleasant April days
Half the world will stir and sing,
But half the world will slug and rot
For all the sap of Spring.

Christina Rossetti, Selected Poems, C. H. Sisson (ed.), Carcanet, 1984

Luís Miguel Nava

Agora que caiu no abismo
e - porque não dizer? - no entorpecimento
onde assentavam as suas palavras,
hasteamos o seu nome.

Do mar à pele, crescem relâmpagos.
Ouviremos trovões revelar a memória
daquele que, com ela, em cujo corpo
fez um rasgão para nos mostrar a treva
que alastra das vísceras ao sangue;
emprestando ao céu
a cor da nudez de quem se veste
na margem duma vida por atirar ao mar,

até que seja uma ferida o silêncio
onde o sal parece ancorar.

Luís Filipe Nunes

Siphenos (Grécia) 1961, por Henri Cartier-Bresson

























É uma rapariga (não sei se é uma rapariga, penso sempre que sim) em 1961, em Siphenos (uma das ilhas das Cíclades?, Grécia), a subir uma escada. A imagem é a de uma dessas aldeias todas caiadas de branco, que os gregos de hoje em dia sabiamente colocam em postais, para deslumbrar os turistas. Mas é a objectiva de Cartier-Bresson e toda a graciosidade do movimento ficou intacta na fotografia.
Esta fotografia dá-me nostalgia (palavra que etimologicamente significa a dor do regresso ou talvez, entre nós, se possa traduzir como a saudade do regresso), uns blues, em relação à Grécia, o que não deixa de ser engraçado: ter nostalgia de lugares onde nunca se esteve. No meu caso são alguns, nenhum tanto como a Grécia.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

In the Heat of the Night



E o prémio para melhores créditos iniciais na categoria «filme que começa com banda sonora» de um filme por mim visto no ano de 2009 vai para o filme In The Heat of The Night (1967), só porque há já uns meses que a letra não me sai da cabeça (vi o filme talvez em Agosto) - a música é de Quincy Jones, a letra de Alan Bergman e Marilyn Bergman, cantada por Ray Charles.

Uma Candeia

Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras e que, contrariamente às aparências, não está na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os contornos dos banhistas.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

Jardim
































A solidão de um jardim, mas na visão transfiguradora de Eugène Atget. Ainda não tive tempo de ler, mas tenho curiosidade de dar uma vista de olhos a este artigo sobre Atget e Rilke.

George Steiner, Doutor «Honoris Causa»pela Universidade de Lisboa

O discurso de George Steiner - e aqui deveria colocar como aposto a expressão «um dos mais brilhantes pensadores vivos», mas isso quase que parece um chavão e está implícito - proferido ontem na Reitoria da Universidade de Lisboa foi curto e sem suporte em papel. Steiner, que recebeu este grau por proposta da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, recordou que as humanidades estão em crise, e, a propósito desta consideração, lembrou que ainda não podemos explicar como é que homens que à noite tocavam Mozart com toda a proficiência exerciam funções de carrasco pela manhã em campos de concentração.
Referiu Saramago como o nosso grande escritor vivo e apelidou Lobo Antunes de dark giant (que diria ele, ou virá a dizer, de Gonçalo M. Tavares?). Proferiu um discurso a dois tempos, maioritariamente em inglês com algumas expressões em francês pelo meio. Descreveu como seria a sua universidade ideal, uma universidade onde se conjugasse o estudo da arquitectura, da física e da música, essa linguagem que, depois de Babel, é a única que é universal, passível de ser compreendida por todos.
Acabou o seu discurso, que alguns poderão descrever como pessimista (os jornalistas portugueses muito possivelmente apenas irão recordar que lamentou não saber português para poder ler Pessoa no original), contando uma anedota onde afinal espreita um olhar de esperança, e talvez de profunda esperança, nas capacidades do homem.
Parafraseando a anedota: Deus resolve acabar com a espécie humana, mas desta vez de forma definitiva. Nada de arca de Noé ou quaisquer outros subterfúgios. O fim chegará em dez dias. Os homens, desesperados, vão ter com o seu rabi: «Rabi, Deus perdeu a paciência, vamos todos morrer afogados dentro de dez dias.» Ao que o rabi responde: «Calma, calma, dez dias é tempo de sobra para aprender a respirar debaixo de água.»
Um discurso curto mas, como se notou no final da cerimónia, muito bonito. Pelo que, gostei (ainda) mais de ouvir George Steiner nesta segunda oportunidade do que na primeira (há ano atrás, na Gulbenkian).

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Foi convertida em museu a última casa de Chaplin.

Boccaccio enquanto Humanista

One of the first to fall under the influence of Petrarch's humanism was his younger contemporary Boccaccio (1313 - 75). Under the patronage of its ruler, Robert of Anjou (1309 - 43), Naples had emerged as an important intellectual centre quite early in the century and it was here that Boccacio spent his youth. His early works, written in italian, belong to the medieval tradition of rhetoric and romance; it was largely his admiration for Petrarch, whom in 1350 he got to know personally, which made him turn from vernacular to Latin, from literature to scholarship. As a scholar he fell far behind from Petrarch; he lacked the patience even to be good at copying manuscripts. He was in the main a gatherer of facts about ancient life and literature, and his encyclopedic treatises on ancient biography, geography and mythology, enjoyed a considerable vogue in the Renaissance and did much to promote the understanding of classical literature. He had a passionate interest in poetry, and this led him along the lesser known paths of Latin literature to poetry unknown to Petrarch, to Martial and Ausonius, to Ovid's Ibis and the Appendix Vergiliana; our oldest manuscript of the Priapea (Laur. 33.31) is in his hand.
[...] Although he was not in the front rank as a scholar, Boccaccio did put his genius and enthusiasm behind the humanist movement and helped to mark out the lines along which it was to develop. He naturalized humanism in Florence and made the first atempt, even if for the time an abortive one, to establish Greek studies in the city which was to become the centre of the teaching of Greek in the west.

L.D. Reynolds e N. G. Wilson, Scribes and Scholars: A Guide to the Transmission of Greek and Latin Literature, Oxford University Press, 1968

Paris (de manhã?)



































Parece que Eugène Atget (autor desta imagem) considerava as suas fotografias como trabalho de base para pintores. Desta forma, muitos dos seus trabalhos foram realizados para atteliers de pintura. Devem por isso circular por aí dezenas de quadros em que pormenores de flores, calçadas, passeios, escadarias, etc., foram pintados a partir de fotografias de Atget. Parece que ele gostava de fotografar a cidade de Paris às primeiras horas da manhã.

É só para lembrar

Que é já amanhã.

Oxford World Classics

A feira de livros da Oxford World Classics (que decorreu durante a semana passada junto à livraria da FLUL) aparentemente mantém-se esta semana. No decorrer da feira, cada exemplar desta colecção custa apenas três euros.

De vez em quando

O mar, se acaso alguém
fechando a mão o faz como se às praias
assim o subtraísse, o mar ligado
por cem mil cordas ao meu leito,

reduz-se a poucas vagas; porque há poros
na pele onde por onde o espírito goteja, há também quem
da parte envidraçada do seu espírito
de vez em quando as veja rebentar.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Outono dos Livros

A Feira de Edições da Biblioteca Nacional, a partir de 25 a 27 de Novembro.

O ritmo da vida

Coração, meu coração(*), que afligem penas sem remédio,
eia! Afasta os inimigos, opondo-lhes um peito
adverso. Mantém-te firme ao pé das ciladas
dos contrários. Se venceres, não exultes abertamente.
Vencido, não te deites em casa a gemer.
Mas goza as alegrias, dói-te com as desgraças,
sem exagero. Aprende a conhecer o ritmo que governa os homens.

(*)θυμός

Arquíloco de Paros in Hélade: Antologia da Cultura Grega, Maria Helena da Rocha Pereira (trad. e org.), Asa Edições, 2003 (8ª edição)

Estrangeiro

A título de curiosidade, deixo aqui alguns dos poemas que Simónides de Ceos, poeta grego que viveu entre o séc. VI e o séc. V a.C., dedicou aos eventos dos últimos conflitos que opuseram gregos e persas, durante as guerras pérsicas, no final das quais, contra todas as possibilidades, os gregos acabaram por sair vitoriosos. A tradução é a da professora Maria Helena da Rocha Pereira, inclusa na antologia Hélade.

Epitáfio das Termópilas

Estrangeiro, vai contar aos Lacedemónios que jazemos
aqui, por obedecermos às suas normas.

A vitória ateniense

Os filhos dos Atenienses, ao aniquilar o exército persa,
da pátria afastaram a dolorosa escravidão.

Epitáfio espartano em Plateias

Envolvendo-se na névoa sombria da morte,
coroaram a pátria amada de glória inextinguível,
Mortos, não desapareceram: o valor que aqui os exornava
os fará regressar da mansão do Hades.

Where Books Come to Life



Via Abebooks Blog.

Can we still speak of a human condition? Some brief remarks.

George Steiner esteve ontem nas Quintas Conferências Internacionais de Filosofia e Epistemologia e proferiu a conferência que dá título a este post. O autor do blogue A Varanda Amarela, Príncipe Myshkin, que ouviu a conferência, elaborou cuidadosamente um texto baseado nas notas que foi tirando ao longo da conferência e do registo áudio que desta fez, satisfazendo assim a curiosidade de uma série de leitores que estavam em pulgas para saber qual o conteúdo do discurso de Steiner. A ler, aqui.

Problema

Can one identify a work of art, of whatever sort, but especially a work of discursive art, if it does not bear the mark of a genre, if it does not signal or mention it or make it remarkable in any way?

Jacques Derrida, "The Law of Genre", Critical Inquiry, Outono de 1980

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Com unhas e dentes, ou mais ou menos.

Universo em Expansão

Mais um blogue para a barra lateral.

Texto Sobre

Os Cantos de Maldoror.

De viver na cidade

De viver na cidade às vezes dá-me uma espécie de nostalgia da minha terra, não de tudo, apenas de duas ou três visões, como por exemplo, as queimas dos arrozais no princípio e no fim das colheitas, ao anoitecer os fogos vão avançando sobre os campos, parecem serpentes que ora se acendem ora se apagam e que limpam a terra para a próxima safra. Ou a visão de uma curva de rio entre Benavente e Salvaterra, estendendo-se sobre a planície. Esta é mais uma imagem do entardecer. Ou a imagem dos miúdos que no Verão entram nas mercearias e saem de lá de dentro apenas com uma ou duas maçãs nas mãos a escorrer água, com um ar de pequena vitória (já vi esta cena uma vez em Lisboa). Ou daqueles mais afoitos que trepam aos muros dos quintais para roubar laranjas. O canto enervante dos grilos perto das janelas. Esse tipo de coisas. São coisas que me parecem semelhantes a certas paisagens descritas por poetas gregos (da antiguidade e modernos), o que é curioso: nunca poderei apostar se esta nostalgia nasce por causa das palavras dos gregos, ou ao contrário, se alguém pode sentir nostalgia da terra onde cresceu apenas por achá-la parecida com aquilo de que falam meia dúzia de poetas de quem gosta.

Em entrelinhas

Tem furos na consciência, este rapaz. Tem a memória em cacos. Que fará da minha infância quando entrar nesse rasgão com que deu a todo o comprimento dela? Que sabe ele do labirinto onde uma letra se extravia ou do horizonte em que pressinto um sublinhado? Ignoro o que ele fará, bem como o que dirá ao ver num poema o céu em entrelinhas.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

University Parks

Do céu pende a folhagem.
A miúda angústia a que
de novo apoio os cotovelos
adquire aqui tonalidades de ouro.

Passaram cães que pareciam cabras.
Por entre os vidros
inquietos dos meus óculos, o verde
das folhas tinge o coração.

Nas ervas
que crescem do meu espírito
pequenos animais escondem o focinho.

O mar vem agarrado à luz. As árvores
desafiam o sol como se nele
tivessem raízes enterradas.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

domingo, 22 de novembro de 2009

O Real

Levado e revolvido pelas vagas
do real, estou como uma mesa posto até aos ossos,
empresto à página os meus ossos e ao escrever
é como se tivesse a mão dentro de um espelho.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

Novidade Editorial

















Este Poemas de Amor: Antologia Poética Latina (I a.C. - III) foi praticamente acabado de publicar pela Relógio d'Água (em Outubro de 2009). A selecção e tradução ficou a cargo de Inês de Ornellas e Castro e de Mafalda Viana, e trata-se de versões directamente do latim. Esta antologia «revisita» autores conhecidos de leitores não especializados, como Horácio, Vergílio ou Propércio, torna acessível um público não especializado autores «menos conhecidos», como Floro, Tiberiano ou Modestino, mas também autores que constituem «casos excepcionais» que nos chegaram da antiguidade, como é o caso de Sulpícia, uma das poucas mulheres escritoras da Antiguidade de que temos notícia.
Pela sua abrangência, esta antologia parece-me ser um excelente esforço de divulgação de autores da antiguidade clássica, por outro lado, conhecendo a qualidade do trabalho das tradutoras, creio que é uma novidade editorial a destacar. Como se afirma na contracapa:
«Os textos poéticos que constituem esta antologia percorrem uma latitude cronológica de cerca de quatrocentos anos de produção literária, dos séculos I a.C. a III da nossa era, e ilustram, de acordo com a época e o género a que pertencem, o modo de a antiga Roma declinar o amor, a paixão ou a mera lascívia. Foi, com efeito, a temática a consubstanciar o critério de selecção.» [De «Palavras Prévias»]

Sem Ofensa

Aqui há dias entrei na livraria do cinema King. A livraria do cinema King era uma boa livraria, que salvo o erro pertencia à Campo das Letras e tinha uma bom catálogo, vendendo livros de inúmeras editoras e não exclusivamente da Campo das Letras. O livreiro responsável, ou o gestor da livraria, devia ser alguém que percebia de livros porque o catálogo era excelente.
Lá comprei livros tão bons como O Ofício de Viver, Terna é a Noite, Poema do Senhor, Ariel, só para citar alguns títulos. As vantagens daquela livraria era inúmeras. Perto de casa, com um café lá dentro (o café do King), um sítio onde ficar à espera do próximo filme, e, claro, o que já referi, um catálogo excelente. Aqui há dias entrei lá. Bem!
Para começar, a livraria do King tinha uma iluminação que dava para ver os livros. Ao entrar estranhei um pouco a iluminação vermelha e os sofás encarnados ao meio, com uma mesinha com um candeeiro entre eles. A luz vermelha não deixava ver bem as estantes e, para mim que sou míope, desdobrou logo toda a atmosfera num milhão de pontinhos que os meus olhos têm dificuldade em focar. As estantes da livraria do King estavam sempre cheia de livros, havia livros em toda a parte, e uma pequena secção que vendia t-shirts e postais de cinema.
Agora as estantes são uns expositores, que vendem uns livros que pelo título não me dão vontade de espreitar o conteúdo (e eu regra geral não sou preconceituosa, tento ler primeiro, depois é que aprovo ou desdenho), de uma tal Chiado Editora (só há livros desta editora, pelo que suponho que compraram o espaço, porém não mantiveram para a livraria a política seguida pela Campo das Letras). Enfim, só a muito custo é que se percebe que se trata de livros nas estantes e quais os títulos, porque a luz vermelha cria o ambiente adequado a, digamos, uma casa de putas (sem ofensa para as putas) mas não a uma livraria. A Campo das Letras «prostituía» bem o seu material, a Chiado Editora nem por isso: a luz vermelha esconde os livros.
Lá mais para um canto ainda estavam alguns livros (muito poucos) que supus serem as sobras da antiga livraria do King. Enfim, menos uma livraria de jeito em Lisboa. Safava-se a empregada que era simpática e mesmo com a luz vermelha deve ter topado o meu grau de desilusão.
Na livraria do King um dos membros deste blogue comprou um número 1 da revista Euphrosyne Nova Série em segunda mão autografado por Rebelo Gonçalves (um classicista saberá do que falo), e esta era a qualidade da livraria em questão.

Há uma pedra feroz

Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.

Luís Miguel Nava, Poesia Completa: 1979 - 1994, Publicações D. Quixote, 2002

Cangurus, métrica, sapatos de couro

Ontem deparei-me, numa tradução de uma tragédia grega (Hugh Lloyd-Jones, The Oresteia, Berkeley, 1979), com a seguinte nota sobre a métrica de uma secção lírica das Coéforas:
The Chorus sings a short lyric stanza without strophic responsion; the meter is iambic mixed with the dochmiacs so often found in lyrics that express emotional agitation. The rhythm of the dochmiac meter is well conveyed by Jebb's mnemonic: "Thĕ wīse kān-găroōs/Rĕsēnt lēath-ĕr shoēs."
sei que me encontraram aqui sem medo
o corpo hirsuto projectando a sombra na chuva
do chão sopra a memória a claridade dos dias
sei que aqui me sentei ele
disse: tenho febre e escrevo
o leve aceno do rapaz sobre os escombros
o seu entrar esquivo nos jardins de pedra
a indecisão tende para unir o mais fraco
de todos os músculos em tensão os olhos fixos na penumbra
tentando discernir e diz
sei que me recordo de ti sem medo ainda sem a palavra certa
casa de infância uma música suave
que traz o entardecer e recorda um caminho para norte
e fica onde a pulsação dispara
a corda onde esta nunca se parte

sábado, 21 de novembro de 2009

Zone

À la fin tu es las de ce monde ancien

Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin

Tu en as assez de vivre dans l'antiquité grecque et romaine
Ici même les automobiles ont l'air d'être anciennes
La religion seule est restée toute neuve la religion
Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation

Seul en Europe tu n'es pas antique ô Christianisme
L'Européen le plus moderne c'est vous Pape Pie X
Et toi que les fenêtres observent la honte te retient
D'entrer dans une église et de t'y confesser ce matin
Tu lis les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout haut
Voilà la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux
Il y a les livraisons à vingt-cinq centimes pleines d'aventures policières
Portraits des grands hommes et mille titres divers

J'ai vu ce matin une jolie rue dont j'ai oublié le nom
Neuve et propre du soleil elle était le clairon
Les directeurs les ouvriers et les belles sténo-dactylographes
Du lundi matin au samedi soir quatre fois par jour y passent
Le matin par trois fois la sirène y gémit
Une cloche rageuse y aboie vers midi
Les inscriptions des enseignes et des murailles
Les plaques les avis à la façon des perroquets criaillent
J'aime la grâce de cette rue industrielle
Située à Paris entre la rue Aumont-Thiéville et l'avenue des Ternes

Voilà la jeune rue et tu n'es encore qu'un petit enfant
Ta mère ne t'habille que de bleu et de blanc
Tu es très pieux et avec le plus ancien de tes camarades René Dalize
Vous n'aimez rien tant que les pompes de l'Église
Il est neuf heures le gaz est baissé tout bleu vous sortez du dortoir en cachette
Vous priez toute la nuit dans la chapelle du collège
Tandis qu'éternelle et adorable profondeur améthyste
Tourne à jamais la flamboyante gloire du Christ
C'est le beau lys que tous nous cultivons
C'est la torche aux cheveux roux que n'éteint pas le vent
C'est le fils pâle et vermeil de la douloureuse mère
C'est l'arbre toujours touffu de toutes les prières
C'est la double potence de l'honneur et de l'éternité
C'est l'étoile à six branches
C'est Dieu qui meurt le vendredi et ressuscite le dimanche
C'est le Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs
Il détient le record du monde pour la hauteur

Pupille Christ de l'œil
Vingtième pupille des siècles il sait y faire
Et changé en oiseau ce siècle comme Jésus monte dans l'air
Les diables dans les abîmes lèvent la tête pour le regarder
lls disent qu'il imite Simon Mage en Judée
Ils crient qu'il sait voler qu'on l'appelle voleur
Les anges voltigent autour du joli voltigeur
Icare Énoch Élie Apollonius de Thyane
Flottent autour du premier aéroplane
Ils s'écartent parfois pour laisser passer ceux que transporte la Sainte-Eucharistie
Ces prêtres qui montent éternellement élevant l'hostie
L'avion se pose enfin sans refermer les ailes
Le ciel s'emplit alors de millions d'hirondelles
À tire-d'aile viennent les corbeaux les faucons les hiboux
D'Afrique arrivent les ibis les flamants les marabouts
L'oiseau Roc célébré par les conteurs et les poètes
Plane tenant dans les serres le crâne d'Adam la première tête
L'aigle fond de l'horizon en poussant un grand cri
Et d'Amérique vient le petit colibri
De Chine sont venus les pihis longs et souples
Qui n'ont qu'une seule aile et qui volent par couples
Puis voici la colombe esprit immaculé
Qu'escortent l'oiseau-lyre et le paon ocellé
Le phénix ce bûcher qui soi-même s'engendre
Un instant voile tout de son ardente cendre
Les sirènes laissant les périlleux détroits
Arrivent en chantant bellement toutes trois
Et tous aigles phénix et pihis de la Chine
Fraternisent avec la volante machine

Maintenant tu marches dans Paris tout seul parmi la foule
Des troupeaux d'autobus mugissants près de toi roulent
L'angoisse de l'amour te serre le gosier
Comme si tu ne devais jamais plus être aimé
Si tu vivais dans l'ancien temps tu entrerais dans un monastère
Vous avez honte quand vous vous surprenez à dire une prière
Tu te moques de toi et comme le feu de l'Enfer ton rire pétille
Les étincelles de ton rire dorent le fond de ta vie
C'est un tableau pendu dans un sombre musée
Et quelquefois tu vas le regarder de près

Aujourd'hui tu marches dans Paris les femmes sont ensanglantées
C'était et je voudrais ne pas m'en souvenir c'était au déclin de la be

Entourée de flammes ferventes Notre-Dame m'a regardé à Chartres
Le sang de votre Sacré-Coeur m'a inondé à Montmartre
Je suis malade d'ouïr les paroles bienheureuses
L'amour dont je souffre est une maladie honteuse
Et l'image qui te possède te fait survivre dans l'insomnie et dans l'angoisse
C'est toujours près de toi cette image qui passe

Maintenant tu es au bord de la Méditerranée
Sous les citronniers qui sont en fleur toute l'année
Avec tes amis tu te promènes en barque
L'un est Nissard il y a un Mentonasque et deux Turbiesques
Nous regardons avec effroi les poulpes des profondeurs
Et parmi les algues nagent les poissons images du Sauveur

Tu es dans le jardin d'une auberge aux environs de Prague
Tu te sens tout heureux une rose est sur la table
Et tu observes au lieu d'écrire ton conte en prose
La cétoine qui dort dans le creux de la rose

Épouvanté tu te vois dessiné dans les agates de Saint-Vit
Tu étais triste à mourir le jour où t'y vis
Tu ressembles au Lazare affolé par le jour
Les aiguilles de l'horloge du quartier juif vont à rebours
Et tu recules aussi dans ta vie lentement
En montant au Hradchin et le soir en écoutant
Dans les tavernes chanter des chansons tchèques

Te voici à Marseille au milieu des pastèques

Te voici à Coblence à l'hôtel du Géant

Te voici à Rome assis sous un néflier du Japon

Te voici à Amsterdam avec une jeune fille que tu trouves belle et qui est laide
Elle doit se marier avec un étudiant de Leyde
On y loue des chambres en latin Cubicula locanda
Je m'en souviens j'y ai passé trois jours et autant à Gouda

Tu es à Paris chez le juge d'instruction
Comme un criminel on te met en état d'arrestation

Tu es fait de douloureux et de joyeux voyages
Avant de t'apercevoir du mensonge et de l'âge
Tu as souffert de l'amour à vingt et à trente ans
J'ai vécu comme un fou et j'ai perdu mon temps
Tu n'oses plus regarder tes mains et à tous moments je voudrais sangloter
Sur toi sur celle que j'aime sur tout ce qui t'a épouvanté

Tu regardes les yeux pleins de larmes ces pauvres immigrants
Ils croient en Dieu ils prient les femmes allaitent des enfants
Ils emplissent de leur odeur le hall de la gare Saint-Lazare
Ils ont foi dans leur étoile comme les rois-mages
Ils espèrent gagner de l'argent dans l'Argentine
Et revenir dans leur pays après avoir fait fortune
Une famille transporte un édredon rouge comme vous transportez votre coeur
Cet édredon et nos rêves sont aussi irréels
Quelques-uns de ces immigrants restent ici et se logent
Rue des Rosiers ou rue des Écouffes dans des bouges
Je les ai vus souvent le soir ils prennent l'air dans la rue
Et se déplacent rarement comme les pièces aux échecs
Il y a surtout des Juifs leurs femmes portent perruque
Elles restent assises exsangues au fond des boutiques

Tu es debout devant le zinc d'un bar crapuleux
Tu prends un café à deux sous parmi les malheureux

Tu es la nuit dans un grand restaurant

Ces femmes ne sont pas méchantes elles ont des soucis cependant
Toutes même la plus laide a fait souffrir son amant
Elle est la fille d'un sergent de ville de Jersey

Ses mains que je n'avais pas vues sont dures et gercées

J'ai une pitié immense pour les coutures de son ventre

J'humilie maintenant à une pauvre fille au rire horrible me bouche

Tu es seul le matin va venir
Les laitiers font tinter leurs bidons dans les rues
La nuit s'éloigne ainsi qu'une belle Métive
C'est Ferdine la fausse ou Léa l'attentive

Et tu bois cet alcool brûlant comme ta vie
Ta vie que tu bois comme une eau-de-vie

Tu marches vers Auteuil tu veux aller chez toi à pied
Dormir parmi tes fétiches d'Océanie et de Guinée
lls sont des Christs d'une autre forme et d'une autre croyance
Ce sont les Christs inférieurs des obscures espérances

Adieu Adieu

Soleil cou coupé

Guillaume Apollinaire, Alcools, Littératures Contemporaines, Éditions Klincksieck, 1996

1 de Dezembro

Assinalam-se os setenta e cinco anos da publicação de Mensagem, o único livro de Pessoa publicado em vida. Ler mais aqui.

Já dizia Gógol...

É que a vida humana é quase como o ferro: se se exercitar gasta-se; se não se exercitar a ferrugem aniquila-o. Assim vemos os homens desgastarem-se na sua actividade, mas, se não tiverem actividade nenhuma, a inércia e a torpeza causam mais prejuízos que o exercício.

Catão, Carme Sobre os Costumes, fr. 3, in Romana: Antologia da Cultura Latina, Maria Helena da Rocha Pereira, Asa Edições, 2005

Gógol disse uma coisa mais ou menos parecida: aqui.

Clássicos sobre clássicos

Se eu não o tivesse nesta edição exactamente, comprava-o outra vez. Foi quase o primeiro livro que vi assim que entrei no curso, e, a par deste e deste, acho que é daqueles «manuais» que qualquer helenista tem sempre na estante. São clássicos sobre clássicos. O último que indico há quem diga que é um livro que serve mais como curiosidade, por ser uma tradução de Saramago, mas eu li-o e gostei bastante.

IX

As vozes silenciam o medo.
Espero sempre que alguém cante para que a palavra
seja o estremecimento puro de uma revelação,
um relâmpago subtil que traga de uma vez
a dupla face do signo.
A matéria cindida à luz daquele que,
desejando,
nomeia.
Como se na distância o seu brilho fosse frio e completo.

João Moita, O Vento Soprado como Sangue, Cosmorama Edições, 2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Entrega das Insígnias de Doutor «Honoris Causa»

A George Steiner, dia 26 de Novembro de 2009 às 15h00 no Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa. George Steiner receberá as insígnias de doutor honoris causa por proposta da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e será apadrinhado na cerimónia pelo Professor José Pedro Serra (professor associado com agregação do Departamento de Estudos Clássicos da FLUL), que proferirá o elogio.

XIV

Um verso implacável:
da têmpera do diamante,
com a agudeza de um vértice,
a precisão do bisturi
na sombra do mundo.

O funâmbulo em débil equilíbrio.

João Moita, O Vento Soprado como Sangue, Cosmorama Edições, 2009

VII

Como a foice se acera na mandrágora,
também a sede escava os veios do mundo.
Talvez assim o amor.

João Moita, O Vento Soprado como Sangue, Cosmorama Edições, 2009

«The Quiet Man» de John Ford, 1952


























De como por vezes a melhor solução para um problema não é a solução para o problema e a única hipótese é resolver tudo à pancada, literalmente. Muito divertido este filme.

As Setenta e Cinco Melhores Capas da DC Comics

























A DC Comics faz setenta e cinco anos e resolveu comemorar seleccionando as suas melhores setenta e cinco capas de sempre. Para quem gostou (ou gosta) de BD vale a pena dar uma vista de olhos. Aqui. A votação começa a 23 de Novembro.
save

For C.E.

I don't answer as to why I waste time,
that I eat and sleep and read and listen to music,
that I am, am not, am not that, but that
I live.

And I go around in these socks and muddy shoes
through the rotted grass and the vineyards,
so that I live, give everything up, even the meekest
hope that it could be otherwhise, that a plane
will not fly, that a face will appear in front of me
not again, but finally, that's what I hope for.

And so I don't move, I drink my tea and sleep
badly. But I hope, strangled by banalities,
I hope for a life in which red blossoms.
That's not modesty, but extinguishment,
an agreement with joy that enters the face out of boredom,
the accomplice of banality and passing time, and
the wild...

Ingeborg Bachmann, Darkness Spoken: The Collected Poems, Peter Filkins (trad.), Charles Simic (intr.), Zephyr Press, 2006

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

(...)
And so I go,
myself a person
and one who wants to remain
without music, who wants to live
without defiance and threrefore
survive, not out of deficiance,
but neverthless.

Ingeborg Bachmann, Darkness Spoken: The Collected Poems, Peter Filkins (trad.), Charles Simic (intr.), Zephyr Press, 2006

Acabado de Chegar

Comparar Pessoa

K. David Jackson (Universidade de Yale) falará sobre o assunto (grosso modo influências de e em Pessoa) dia 24 de Novembro, das 16 às 18h na sala 2.16 da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entrada Livre. Mais informações aqui.

Canto de Embalar

Rimbaud

As noites, as pontes de comboio, a má estrela,
Os seus temíveis companheiros não as conheciam;
Mas nessa criança a mentira do retórico
Queimava como uma fornalha: o frio fizera um poeta.

As bebidas que o seu amigo tíbio e lírico
Lhe comprava, perturbavam-lhe os cinco sentidos,
Terminando com todo o nonsense corriqueiro;
Até se alhear dos pecados e da lira.

Os versos eram uma doença específica do ouvido;
A integridade era de menos; parecia
O inferno da infância: devia tentar de novo.

Agora, galopando pela África, ele sonhava
Um novo eu, um filho, um engenheiro,
Cuja verdade mentirosos aceitassem.

W. H. Auden, O Massacre dos Inocentes (Uma Antologia), José Alberto Oliveira (trad.), Assírio & Alvim, 1994

A propósito de Verlaine acaba-se sempre por falar de Rimbaud, aqui há dias falou-se de Verlaine e lembrei-me deste poema.
Tenho duas traduções de Rimbaud na estante, a de Cesariny de Iluminações e Uma Cerveja no Inferno, tradução do título Une Saison en Enfer e O Rapaz Raro em tradução de Maria Gariela Llansol.
Não sei porquê embirro com as traduções de MGL (todas as que até agora me passaram pelas mãos sem excepção). Enquanto a tradução-versão-interpretação de Cesariny me fez adorar Rimbaud, é um exemplo de um trabalho sobre determinado corpus de texto bem feito e a edição bilingue permite-nos ver onde começa Cesariny e acaba Rimbaud, a de MGL deixou-me a impressão de estar perante uma tradução demasiado presa à língua de partida que por vezes se esquecia da língua de chegada (este pode ser um reparo injusto), e isso também não é bom para o texto traduzido.
Creio que a tradução de Cesariny demonstra que um tradutor pode ser interpretativo sem se esquecer do texto que está a traduzir e, apesar dos desvios, creio que Cesariny nunca se esquece do seu papel de tradutor. O leitor desta tradução assume o acordo tácito (logo ao olhar para o título) de jogar pelas regras do tradutor e a experiência de leitura ganha com isso. Cesariny não tem pretensões a verter literalmente o texto (a própria tradução do título é um trabalho de interpretação) mas tudo isto converge para termos uma excelente versão de Iluminações e Uma Cerveja no Inferno. Com a tradução de MGL sucede um pouco o inverso, um tradutor demasiado preocupado com a língua de partida, o que é legítimo mas também retira «movimento» ao texto em português, olhamos para a edição bilingue ao lado e na tradução temos apenas um Rimbaud mais desengraçado. A tradução perdeu coisas porque o tradutor foi bastante fiel mas esqueceu-se do espírito do texto. Isto não é necessariamente mau, mas o trabalho de Cesariny é melhor, também, trata-se de Cesariny. Neste campo, Herberto Helder fez algo semelhante com os seus Poemas Mudados Para... mas aí já nem estamos no campo da tradução.
De qualquer forma, no caso de ambas as traduções, as edições feitas são bilingues, e a beleza dos textos de Rimbaud resiste (ou é mantida) nas traduções.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Uma cena de «The Wild One» de Laslo Benedek, 1953

Prefácio

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
— Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes —
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
— Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
.....................— Estas casas serão destruídas.
Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu casamento solar, assim
se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos
da terra
onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas, as caras ardendo nas velozes
iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas.
Traziam sal, os construtores
da alma, comportavam em si
restituidores deslumbramentos em presença da suspensão
de animais e estrelas,
imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando uns nos outros —
comovidos, difíceis, dadivosos,
.....................................................ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam
com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.
...........................— E as casas levantavam-se
sobre as águas ao comprido do céu.
Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e obsessiva — tudo isso
está longe da canção que era preciso escrever.

— E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes que fulguram lentamente
até uma baía fria — que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
...........................................................de beleza.

Herberto Helder, A Colher na Boca in Ofício Cantante, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009
«Tínhamos de verdadeiro a questão do destino.»
João Miguel Fernandes Jorge citado por Maria de
Lourdes Belchior in Gramática do Mundo

Tínhamos
em comum
ter de ganhar
o pão
de cada dia
e ter muita
dificuldade
em ganhar
o pão
de cada dia

Isto
é muito mais
que a questão
do destino

Adília Lopes, Dobra:Poesia Reunida, Assírio & Alvim, 2009

Waiting Room

We no longer share a language.
Together we are waiting.
A chair,
a bench,
a window
through which the light in our room
falls
on our hands,
on our eyes and otherwise
on the floor.

Heal our eyes
so that we can again find the words,
so multi-colored, that I can say to you.

Ingeborg Bachmann, Darkness Spoken: The Collected Poems, Peter Filkins (trad.), Charles Simic (intr.), Zephyr Press, 2006
Este site já existe há muito tempo, mas se, tal como eu, não o conheciam, divirtam-se.
Acabo de acabar a tradução que servirá de base à minha dissertação de mestrado.

Hôtel de La Paix

The weight of roses falls silently from the walls
and through the carpet shine the floor and earth.
The light's heart breaks within the lamp.
Darkness. Steps.
The bolt slams shut as death comes knocking.

Ingeborg Bachmann, Darkness Spoken: The Collected Poems, Peter Filkins (trad.), Charles Simic (intr.), Zephyr Press, 2006

terça-feira, 17 de novembro de 2009

From Sea to Sea. A partir de amanhã.

Quando pensarem num grande filme do cinema europeu...


...lembrem-se deste Roma Città Aperta de Rosselini, filmado em 1945. Lembrem-se da interpretação brilhante de Anna Magnani ou da de Aldo Fabrizi. É uma das melhores obras que o neo-realismo italiano nos deixou. Acho que este filme é tudo o que um filme deve ser.
Fedra está apaixonada
por Hipólito
Hipólito não está apaixonado
por Fedra
Fedra enforca-se
Hipólito morre
num acidente

Dido está apaixonada
por Eneias
Eneias não está apaixonado
por Dido
Dido oferece uma espada
a Eneias
Eneias esquece-se da espada
quando se vai embora

Dido suicida-se
com a espada esquecida
por Eneias

Um desgosto de amor
atirou-me para um
curso de dactilografia
consolo-me
a escrever automaticamente
o pior são os tempos livres.

Adília Lopes, Dobra:Poesia Reunida, Assírio & Alvim, 2009
How many roads must a man walk down
before you call him a man?

À Maneira de Vieira

Mas eu
não morro
nunca
e eternamente
busco e consigo
a perfeição
das coisas
porque sou
ateniense e grega

Adília Lopes, Dobra:Poesia Reunida, Assírio e Alvim, 2009

(Acho que só poderia ter escrito este poema quem tivesse passado pela estação de metro da Cidade Universitária em Lisboa.)

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Laureen Bacall recebe Oscar «honoris causa».
Boas notícias/más notícias (financeiramente falando).

Underground, Emir Kusturica, 1995

Comboio

À minha frente no Intercidades vai um tipo sentado com um telemóvel igual ao meu. O rapaz vai a ler uma revista tipo playboy (tanta mulher semi-vestida ou semi-despida deve ser coisa do género) e de repente um telefone toca. Eu acho que é o meu. Mas é o dele. Ao mesmo tempo que o rapaz fala com a namorada e garante que acabou de enviar três mensagens vai olhando para a Nádia (miúda seminua na revista), o título do texto onde vêm as fotos da menina é, justamente, «Nádia a esconder». Acabo o Dobra e começo a ler o Joyce. O telemóvel toca a viagem toda. A namorada que o rapaz gostava que fosse a Nádia interrompe o funeral no Joyce pois sempre que o telefone do moço toca acho que é o meu.

O Neo-Realismo Italiano


Um documentário sobre. Aqui.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Fui

Este blogue em princípio não deverá ser actualizado até segunda-feira.
(Até já.)

Lançamento

Hoje ao passar pelo corredor que vai dar à biblioteca da FLUL descobri que a Cine Qua Non (revista de música, dança, teatro, artes visuais, literatura, cinema...errr espero não me ter esquecido de nada) vai fazer o lançamento do seu primeiro número dia 17 de Novembro, pelas 18.30h, na FLUL.

Istambul

City

I was born in a city,
but i didn't know what that meant.
I grew up in a city,
and I didn't know that meant.
Onde day I left this city,
and I didn't know what that meant.
One day I returned to this city,
and then I knew what that meant.

City, you monstruosity of narrow streets and stone,
city, crowds and people pressing at one,
city, the rushing, shoving and chase,
city, full of sirens, cars and trains,
city, full of pale faces that continually suffer,
city, at night your streetlight flicker,
city, which has no space for the elements,
city, where a tree grasps wearily in the cement.

City, which I could never tolerate,
city, which I will always hate.

Ingeborg Bachmann, Darkness Spoken: The Collected Poems, Peter Filkins (trad.), Charles Simic (intr.), Zephyr Press, 2006.

The Life and Times of Allen Ginsberg


Jerry Aronson reuniu durante 25 anos 120 horas de filme sobre Allen Ginsberg. Aqui fica o trailer.

Princípio...

Pomposo, roliço, Buck Mulligan, veio do alto da escada trazendo uma tigela com espuma de barbear, na qual se cruzavam, em cima, um espelho e uma navalha. O roupão amarelo, solto, sustinha-o por detrás, gentilmente, a brisa suave da manhã. Ergueu a tigela e entoou:
-Introibo ad altare Dei.

...do livro que começo a ler hoje e me vai ocupar nos próximos tempos. Qual é?

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

[A] ficção é como uma teia de aranha, talvez muito levemente ligada, mas ligada à vida nos seus quatro cantos. Muitas vezes esta ligação é dificilmente perceptível; as peças de Shakespeare, por exemplo, parecem estar ali suspensas, completas sem ajuda de ninguém. Mas quando a teia é puxada para o lado, presa na orla, rasgada no meio, lembramo-nos de que estas teias não são fiadas no ar por criaturas incorpóreas, mas, sim, o trabalho de seres humanos que sofrem e que estão ligados a factos extremamente reais como a saúde, o dinheiro e as casas em que vivemos.

Virginia Woolf
, Um Quarto Só Para Si, Maria de Lourdes Guimarães (trad.), Relógio d'Água, 2005

Travessias Poéticas

É uma iniciativa da Universidade Aberta que terá lugar na Fundação Calouste Gulbenkian e tem por objecto a poesia contemporânea em Portugal e no Brasil. O painel de conferencistas reúne especialistas em poesia contemporânea (e não só) de ambos os lados do Atlântico e as conferências decorrerão no Anfiteatro 3 da Fundação Calouste Gulbenkian entre 18 e 20 de Novembro. De Pessoa a Fernando Echevarría passando por Sophia ou João Cabral de Melo Neto. Aqui fica o programa.

Allen Ginsberg

No dia seguinte aparece o Allen com um monte de livros. Dezasseis anos e com as orelhas espetadas. Ele diz «Bem, a descrição é o que há de mais valioso!» E eu disse: «Oh, cala-te meu espasmo.» [...] Allen Ginsberg perguntou-me quando eu tinha dezanove anos: «Achas que devo mudar o meu nome para Allen Renard?» «Mudas o nome para Allen Renard e eu dou-te um pontapé nos tomates! Mantém-te Ginsberg...» e ele assim fez. É uma das coisas que eu gosto no Allen. Allen Renard!!!

Jack Keroauc em Entrevistas da Paris Review, Selecção e Tradução de Carlos Vaz Marques, Tinta da China, 2009

60 Anos Depois Publicada uma Nova Obra de Kerouac e Burroughs

Sessenta anos depois, a Penguin Classics voltou a publicar uma novela de Jack Kerouac escrita em parceria com William Burroughs, a mítica novela que ambos escreveram em conjunto, baseada no assassinato, em 1944, de David Kammerer.
Lucien Carr, um membro destacado do movimento beat, amigo de Kerouac e Burroughs, apunhalou Kammerer, declarou-se culpado do homicídio e foi condenado a vinte anos de prisão, dos quais cumpriu dois.
Kerouac e Burroughs terão ajudado Carr a desfazer-se da arma do crime e foram ambos presos por isso. A família de Burroughs pagou a fiança mas Kerouac cumpriu pena de prisão (o pai recusou-se a pagar-lhe a fiança) e só foi libertado quando a sua mulher, Edie Parker, com quem se casou estando ainda preso, lhe pagou a fiança.
No meio de tanta confusão, Kerouac e Burroughs escreveram uma novela sobre o sucedido, And The Hippos were Boiled in Their Thanks, que nunca chegou a ser publicada.

Em entrevista à Paris Review, Kerouak afirmava que ambos haviam a escrito a novela seguindo um método de composição espontânea e que tinha o texto escondido no soalho de sua casa. Nesta entrevista Kerouac explica também o porquê de um título tão estranho:
«Chama-se And the Hippos were Boiled in Their Thanks. Os hipopótamos. Porque Burroughs e eu estávamos sentados num bar e ouvimos um noticiarista dizer "... e os egípcios atacaram blá blá ... enquanto issso houve um grande fogo no jardim zoológico de Londres e o fogo propagou-se pelos campos e os hipopótamos arderam nos seus tanques! Boa noite a todos!" Foi o Bill que reparou naquilo. Porque ele repara nesse tipo de coisa.»

As Obras-primas

As obras-primas não são começos individuais e solitários; são o resultado de muitos anos de reflexão em comum, de reflexão feita por todos, para que essa experiência esteja por detrás de uma voz única.

Virginia Woolf, Um Quarto Só Para Si, Maria de Lourdes Guimarães (trad.), Relógio d'Água, 2005

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Jane Austen e Shakespeare

Eis aqui uma mulher [Jane Austen], por volta do ano de 1800, a escrever sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem exaltação. Foi assim que Shakespeare escreveu, pensei, ao olhar para Anthony and Cleopatra; e quando se compara Shakespeare e Jane Austen, verifica-se que o espírito de ambos estava livre de tais obstáculos; e por essa razão algo se desconhece em Jane Austen e em Shakespeare.

Virginia Woolf
, Um Quarto Só Para Si, Maria de Lourdes Guimarães (trad.), Relógio d'Água, 2005


Shakespeare segundo Virginia Woolf

Embora se diga que nada conhecemos sobre o estado de espírito de Shakespeare, mesmo ao dizê-lo estamos a dizer qualquer coisa sobre o seu estado de espírito. Talvez a razão porque sabemos tão pouco de Shakespeare - comparado com Donne ou Ben Johnson ou Milton - seja a de ignorarmos os seus rancores, despeitos e antipatias. Não estamos limitados por qualquer «revelação» que nos recorde o escritor. Todo o desejo de protestar, de gritar, de proclamar uma injúria, de um ajuste de contas, de transformar-nos numa testemunha de uma dificuldade ou ofensa, tudo isso foi por ele posto de parte e destruído. Portanto a sua poesia flui livre e sem entraves. Se alguma vez um ser humano conseguiu que a sua obra alcançasse a realização plena, esse foi Shakespeare. Se alguma vez um espírito foi genial, sem limites, pensei voltando-me outra vez para a estante, esse foi Shakespeare.

Virginia Woolf
, Um Quarto Só Para Si, Maria de Lourdes Guimarães (trad.), Relógio d'Água, 2005


Uma Espécie de Curso sobre Fellini


Em partes no YouTube. Sigam o link.

O Novo Romance de Pamuk

«En El Museo de la Inocencia, la nueva novela de Orhan Pamuk, un personaje colecciona 4.213 colillas fumadas por la mujer que ama. En la entrada del Museo de la Inocencia, el museo real que Pamuk inaugurará el año que viene en Estambul, habrá una caja de vidrio de cinco metros por tres metros con 4.213 puchos verdaderos dentro. En la novela, Pamuk cuenta la historia de Kemal, que vive durante dos meses y recuerda durante treinta años el romance de primavera que le cambió la vida. En una esquina del barrio de Çukurkuma, en la mitad europea de Estambul, Pamuk ha construido un museo y lo ha llenado con los objetos, las fotos y los sonidos con los que Kemal homenajea a Füsun, la prima lejana y pobre que en 1975 interrumpió la placidez de su vida burguesa.»
Ler mais aqui. Via Ler.

Aquiles e Pátroclo

Nem sucessivas e sucessivas migrações de aves
Perfarão a distância que agora nos separa
Mas esta nau não me levará a casa
E seguir-te não será morrer

Daniel Faria
, Poesia, Vera Vouga (edt.), Quasi, 2009 (3a ed.)

(Não me lembro se já copiei algures este poema, de qualquer forma, há pouco lembrei-me dele.)
Nuno Ramos vence prémio PT de Literatura. Ler mais aqui.

(Como Ariadne Costurando Umbrais)

A meada doba e roda a mão fechada
Em seu silêncio de coisa destruída
Como despetalada uma corola aberta
Boca, ferida, cratera
Círculo que resiste à forma da palavra.

A teia é movimento que persiste
Em sua paciência.
Como Ariadne costurando umbrais
Para que Teseu possa vir do nada.

Daniel Faria, Poesia, Vera Vouga (edt.), Quasi, 2009 (3a ed.)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Estrangement

Within the threes I no longer can see any threes.
The branches are bare of leaves, carried off by wind.
The fruits are sweet, but empty of love.
They do not even satisfy.
What shall happen?
Before my eyes the forest flees,
the birds no longer sing to my ears,
and for me no pasture will become a bed.
I am full with time
yet hunger for it.
What shall happen?

Nightly upon the mountains the fires will burn.
Shall I head out, draw near to them all once again?

I can no longer see on any path a path.

Ingeborg Bachmann, Darkness Spoken: The Collected Poems, Peter Filkins (trad.), Charles Simic (intr.), Zephyr Press, 2006.

Um Quarto só Para Si

Só vos podia oferecer uma opinião quanto a um aspecto sem importância - uma mulher tem de ter dinheiro e um quarto só para si se quiser escrever ficção; e isso, como ides verificar, deixa por resolver o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção.

Virginia Woolf, Um Quarto Só Para Si, Maria de Lourdes Guimarães (trad.), Relógio d'Água, 2005






















Não, não é o Kertész. Mas continua a ser uma bela fotografia de alguém a ler. Mais da mesma fotógrafa aqui.

«Ulysses» de Mario Camerini, 1954



















Esta adaptação cinematográfica da Odisseia é divertida mas um pouco fraca. Não tenho, contudo, memória de alguma vez ter visto uma adaptação dos poemas homéricos que rivalizasse com os livros. (Não, nem aquela com o truque baixo das pernas-do-Brad-Pitt-que-não-eram-dele. )
Um bom argumento baseado em determinada obra, nas mãos de um realizador hábil a dirigir grandes actores, tem sempre grandes hipóteses de suplantar o livro que lhe serve de base, diria até que tem obrigação de fazê-lo.
Não o fazer significa que há uma parte de encanto que certos livros conseguem guardar mesmo quando trazidos à vida, o encanto próprio da literatura que é uma coisa que eu ainda não consegui muito bem explicar.
À parte ser um pouco fraca, esta adaptação da Odisseia divertiu-me, afinal de contas, é o Kirk Douglas a fazer de Ulisses e o Anthony Quinn a fazer de Antínoo.

O Criador e a Personagem

Either I'm a Social Animal or...

por estes tempos a blogosfera anda a ganhar blogues (que pelo menos para mim são) muito interessantes. Eis mais um a seguir.

15

Acalma-te erva doce
que cresces da terra,
não toques a suave harmonia
das coisas vivas,
morde a tua medida
porque o meu coração está triste
não pode dar harmonia.

Acalma-te erva verde
não subas para os fossos
com o teu canto de luz,
oh fica debaixo da terra
nua na tua semente
como eu faço e não dou
erva de uma palavra.

Alda Merini, A Terra Santa, Clara Rowland (trad.), Livros Cotovia, 2004

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Lançamento

de Paisagem e Erudição no Humanismo Português. Ver aqui.

my way is in the sand flowing

my way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end

my peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts

Samuel Beckett, The Grove Centenary Edition, vol. IV: Poems, Short Fiction, Criticism, Grove Press, New York, 2006

Les Foules

Multitude, solitude: termes égaux et convertibles pour le poète actif et fécond. Qui ne sait pas peupler sa solitude, ne sait pas non plus être seul dans une foule affairée.

Charles Baudelaire, " Les Foules", Le Spleen de Paris

24

Nada mais, estou certa, abafará a minha rima,
......contive durante anos o silêncio na garganta
..............como uma armadilha para um sacrifício,
....................chegou agora o momento de cantar
exéquias ao passado.

Alda Merini, A Terra Santa, Clara Rowland (trad.), Livros Cotovia, 2004

Assírio & Alvim no Chiado

A partir das 19h00 de hoje [dia 7 de Novembro], e até ao dia 31 de Dezembro de 2009, livros, livros e mais livros no Chiado. Livros mais baratos, livros esgotados, livros impossíveis de encontrar, livros de artista, livros de tiragem limitada, e ainda, postais, cartazes e outras surpresas. Um novo projecto temporário da Assírio & Alvim no Chiado, desta vez na Rua do Carmo, 35, loja 12 (antiga Bolsera). De segunda a sexta-feira das 12h00 às 19h00, e ao sábado das 10h00 às 19h00.

Via Cadeirão Voltaire.(Mais uma iniciativa da Assírio & Alvim, que aparentemente tomou a cargo a tarefa de arruinar financeiramente e até ao final deste mês diversos colaboradores deste blogue.)

Uma cena de «Rumble Fish» de Francis Ford Coppola, 1983















A famosa cena dos peixes. Aqui.

Tetro

Há uma anedota que se conta acerca de Coppola: que ele terá dito que tinha feito filmes como O Padrinho num momento de desvio à ideia que originalmente tinha para a sua carreira de cineasta. Ele pretendia, na verdade, fazer filmes inovadores, de baixo orçamento, à margem de Hollywood. Rumble Fish (1983) seria um exemplo paradigmático deste tipo de filmes. Mas parece que também o é este novo Tetro, o primeiro filme em 30 anos com um argumento totalmente escrito pelo cineasta. Estreia dia 19... e eu estou em pulgas. Só não sei se irei ao cinema para ver o Coppola de O Padrinho ou o de Rumble Fish. Mas não interessa, qualquer um dos dois é bom. Ler mais aqui.

12

Para ti escrevi árduas sentenças,
para ti escrevi todo o meu declínio;
aniquilo-me agora, e nada pode salvar
a minha voz devota, apenas um canto
pode transparecer sobre a minha pele
e é um canto de amor que amadurece
esta minha eternidade sem limites.

Alda Merini, A Terra Santa, Clara Rowland (trad.), Livros Cotovia, 2004

domingo, 8 de novembro de 2009

Poesia e Inteligência

De facto, se me permite que diga isto, acho Frost um poeta melhor do que Eliot. Quer dizer, melhor poeta. Mas creio que Eliot era um homem muito mais inteligente; a inteligência, no entanto, tem pouco que ver com a poesia. A poesia brota de algo mais profundo; é anterior à inteligência. Talvez nem sequer esteja ligada à sabedoria. É algo em si mesma; tem a sua própria natureza. Indefinível.

Jorge Luís Borges em Entrevistas da Paris Review, Selecção e Tradução de Carlos Vaz Marques, Tinta da China, 2009

After Many Years

Time's arrow rests easily in the sun's drawn bow.
As soon as the agave blossoms from the cliffs,
your heart will sway above in the wind that blows
each hour's lenght trough its every tick.

Already a shadow drifts above the Azores
and over your breast's own quaking garnet.
Death is also the moment's conspirator,
and you, towards whom it streaks, the target.

The sea is also spoiled and vain, a mere
shift of its mirror swallowing a handfull of blood,
just as the agave blooms after many years
in the shelter of cliffs, before the druken flood.

Ingeborg Bachmann, Darkness Spoken: The Collected Poems, Peter Filkins (trad.), Charles Simic (intr.), Zephyr Press, 2006.

Atacar Pessoas

Não gosto de atacar pessoas, especialmente agora - quando era jovem, sim, gostava muito, mas à medida que o tempo passa, uma pessoa apercebe-se de que isso não é bom. Quando as pessoas escrevem a favor ou contra qualquer coisa, isso ou dificilmente as ajuda ou as magoa. Acho que um homem pode ser ajudado, bem, o homem pode ser feito ou desfeito pela sua própria escrita, não por algo que os outros digam dele, portanto mesmo que uma pessoa se gabe muito e que as pessoas digam que ela é um génio - bem, ela há-de ser descoberta.

Jorge Luís Borges em Entrevistas da Paris Review, Selecção e Tradução de Carlos Vaz Marques, Tinta da China, 2009

10

Eu era um pássaro
com o branco ventre gentil
alguém me cortou a garganta
...........para se rir,
...........não sei.
Eu era um grande albatroz
e pairava sobre os mares.
Alguém deteve a minha viagem,
sem qualquer caridade de som.
Mas mesmo estendida no chão
eu canto agora para ti
as minhas canções de amor.

Alda Merini, A Terra Santa, Clara Rowland (trad.), Livros Cotovia, 2004

Uma cena de «Annie Hall» de Woody Allen, 1977


(Não gostavam que isto pudesse mesmo acontecer?)

Tango

A guitarra era um instrumento popular quando eu era jovem. Nesse tempo encontrava-se gente a tocar guitarra, sem grande jeito, em quase todas as esquinas de qualquer cidade. Alguns dos melhores tangos foram compostos por gente que não era capaz de os escrever nem de os ler. Mas era gente que tinha, claro, a música na alma, tal como Shakespeare teria dito. Portanto, ditavam esses tangos a alguém; eles eram tocados ao piano e eram escritos e publicados por gente letrada. Lembro-me de ter conhecido uma dessas pessoas, Ernesto Poncio. Escreveu Don Juan, um dos melhores tangos antes do tango ser estragado pelos italianos em La Boca (1) e por aí adiante - quer dizer, quando os tangos vinham dos criollos. Um dia ele disse-me: já estive na prisão muitas vezes, señor Borges, mas sempre por homicídio! Aquilo que ele queria dizer é que não era nem um ladrão nem um chulo.

(1)Bairro italiano em Buenos Aires, habitado por italianos oriundos de Génova.

Jorge Luís Borges em Entrevistas da Paris Review, Selecção e Tradução de Carlos Vaz Marques, Tinta da China, 2009

sábado, 7 de novembro de 2009

o rapaz olha a chuva alastrando
sobre o vinho derramado no chão
tem agora as mãos geladas
os cabelos escorrendo água
curva-se sobre a terra batida
hesita pensa em apanhar os cacos
tirar do caminho a garrafa
escondê-la
pensa em tornar a descer à vinha
recuperar o que
para uma pequena angústia
fica de vez quebrado

é tão fácil a tentação do nada ter acontecido
do ainda aqui não ter estado
tão fácil a palavra que vestia
os joelhos agora sujos de lama
o vinho precioso perece
mas vai alastrando numa poça

a palavra que lhe apaga a pequena face
também te veda um grito a plenos pulmões
vidro partindo-se como não estar agrilhoado
como não ter ainda percorrido
a distância desta corrida
subindo a encosta
os pés descalços derrapando na lama

*
o rapaz corria
com uma energia que nada esgotava
corria seguro com a garrafa debaixo do braço
um pequeno Hermes mas com uma energia cega
férrea estúpida
por isso certa
verdadeira inesgotável

para nada

ele vê o seu reflexo verde
no vidro partido
o vinho agora perto do sangue
o grito chovendo baixinho
próximo dos ouvidos
inventando no peito o lugar do choro
a forma como
há-de mais tarde encolher os ombros
deixar tombar a cabeça para a frente

Hamlet

Tudo se cala. E subo para o palco.
Encosto o ouvido à porta, pressentindo,
No rumor surdo de uma voz longínqua,
Já o eco de tudo o que me aguarda.

A noite negra fez de mim seu alvo,
Sobre mim cem binóculos lançou.
Abba, ó pai, se acaso, ainda podes,
Ordena que este cális me não caiba.

É certo no entanto que me agrada
O papel que me deu teu duro intento.
Outro drama, porém, preenche a cena:
Dá-me por esta vez a liberdade.

Mas a ordem dos actos foi pesada
E o desfecho também, sem remissão.
Só. E os fariseus, senhor's em todo o lado.
Viver é mais que atravessar um campo.

Boris Pasternak «Versos de Iuri Jivago», O Doutor Jivago (1957) in Vozes da Poesia Europeia III, Colóquio Letras 165, David Mourão Ferreira (trad.), Fundação Calouste Gulbenkian, Setembro-Dezembro de 2003.

what would I do without...

what would I do without this world faceless incurious
where to be lasts but an instant where every instant
spills in the void the ignorance of having been
without this wave where in the end
body and shadow together are engulfed
what would I do without this silence where the murmurs die
the pantings and frenzies towards succour towards love
without this sky that soars
above its ballast dust

what would I do what I did yesterday and the day before
peering out of my deadlight looking for another
wandering like me eddying far from all the living
in a convulsive space
among the voices voiceless
that throng my hiddenness

Samuel Beckett, The Grove Centenary Edition, vol. IV: Poems, Short Fiction, Criticism, Grove Press, New York, 2006

Blogue Novo

por Gonçalo Mira. Salta para a barra lateral. Pode ser lido aqui.

Os Frescos no Metropolitano de Roma


Durante as gravações de Roma, Fellini realizou algumas filmagens no metropolitano de Roma. O resultado foi que captou com a sua objectiva uma série de belíssimos frescos de Roma Antiga, mas os frescos vão-se esvanecendo, por acção do ar, à medida que a câmara os filma. É um daqueles momentos encantatórios do cinema. Sentimo-nos tristes à medida que aquela beleza, que se conservara durante séculos, vai sendo revelada e, por consequência, destruída.
Mas seria melhor que permanecessem ali para sempre sem nunca os termos visto?

As Traduções de David Mourão-Ferreira

Entre os números 163 a 165 a Colóquio-Letras encarregou-se de criar uma série que reúne as diferentes traduções de poesia de David Mourão-Ferreira. A série intitula-se Vozes da Poesia Europeia (I,II e III) e reúne um largo número de poetas. De Homero a Valery passando por Antonio Machado (este era aquele poeta espanhol que também criou uma série de personalidades literárias muito semelhante aos heterónimos de Pessoa) ou Rilke ou (poesia atribuída a) Poliziano.
Do número 163 ao 165 viajamos em diacronia pelas diferentes vozes poesia europeia que David Mourão-Ferreira quis traduzir, começando na antiguidade e terminando no séc. XX.
Trata-se de mais um daqueles casos em que a selecção antológica vale a pena não só pelo número de poetas que reúne mas também para observarmos as decisões do tradutor/organizador.
Os números contam com ilustrações de Nuno Veigas.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Tradução Por Pasternak

Na verdade, o único tipo de tradução interessante é a dos clássicos. É um trabalho desafiador. No que diz respeito à escrita moderna, raramente se torna recompensador traduzi-la, embora possa ser fácil. [...] A tradução é algo muito parecido com o processo de copiar um quadro. Imagine-se a copiar um Malevitch, não seria aborrecido?

Boris Pasternak
em Entrevistas da Paris Review, Selecção e Tradução de Carlos Vaz Marques, Tinta da China, 2009